Maldita coincidência, 1979. Longa-metragem, 35mm, ficção

"Inteligente painel da geração 70". Francisco Alves dos Santos, Diário do Paraná.

"Maldita coincidência/Eles não usam black-tie". Jean-Claude Bernardet, Filme Cultura, ano XVI, maio 1983, no. 41/42, p. 73-75. *

Maldita coincidência, 1979. Longa-metragem, 35mm, ficção Fotografia: Pedro Farkas; Montagem: José Carvalho Motta, Alberto Melnechury e Bia Bracher; Cenografia: Ivan de Sá Pereira, Betty Leiner e Tatá; Música: Roberto Barros e Lauro Godoy; Produção: Jefferson de Albuquerque Jr., André Rosa, Ivan de Sá Pereira, André Klotzel e Micky Neo; Elenco: Rodrigo Santiago, Sérgio Mamberti, Maria Alice Vergueiro, Patrício Bisso, Lélia Abramo, Isa Kopelman, Jacques Suchodosky, Célia Maracajá, Luiz Roberto Galizia e George Otto. Prêmio Concine 1982 para os dez melhores filmes do ano.

"Inteligente painel da geração 70". Francisco Alves dos Santos, Diário do Paraná.

"Maldita coincidência", longa-metragem do diretor paranaense Sérgio Bianchi, é um painel vivo e fascinante, ao mesmo tempo que crítico, do comportamento da juventude brasileira dos anos setenta. O filme é uma síntese perfeita de uma série de mudanças verificadas na maneira desta juventude encarar a existência humana e suas relações. Encarando tais mudanças, os personagens são representantes de uma nova filosofia de vida, mais firmada nas atitudes espontâneas, naturais, do que nas aparências. "Maldita coincidência" reflete toda uma geração que fez a revolução sexual à revelia dos dogmas sócio-familiares e morais vigentes. É a encarnação fílmica de uma geração que nesta sede de liberdade, e de encontrar consigo mesma, buscou experiência, emoções, sensações e comportamentos novos; da droga à marginalidade. O filme conta com 22 atores, alguns famosos no cinema e no teatro brasileiro, como Rodrigo Santiago, Sérgio Mamberti, Célia Maracajá e Lélia Abramo. O personagem-chefe porém é um casarão abandonado, no centro de São Paulo, que serve de locação ao filme. Este casarão não é, como se podia pensar, uma mera peça de décor ou de figuração. É, pelo contrário, uma presença viva, misteriosa e inquietante. E que ampara esta estranha comunidade que, afastada das loucuras do mundo lá fora, das ruas, da profissão, do estudo, da família, vive um cotidiano novo em que os membros se dão em curiosas permutas, sem dilacerações e sem barreiras. Não é a promiscuidade, porém a ousadia libertária. O filme "Maldita coincidência" é de uma beleza visual impressionante. A fotografia de Pedro Farkas, num colorido impecável, sobremaneira intimista, contribui para realçar mais ainda o tom intrinsecamente místico de cada cena. Estamos diante de um filme inteligente onde criatividade cinematográfica e sensibilidade se fundem num todo harmonioso e belo, sem porém deixar de ser intrigante. "Maldita coincidência" que, como toda a verdadeira obra de arte, é filme mais de sentir do que de definir, comprova o talento de Sérgio Bianchi que tendo começado como ator em "Lance maior" (1968), do também paranaense Sílvio Back, fez depois diversos curtas, largamente vistos nos cinemas de todo o Brasil, e que agora com o presente filme estréia na direção de longa-metragem. Um programa imperdível. Mesmo porque, como observou o pesquisador e cineasta Valêncio Xavier, é um dos poucos filmes brasileiros, se não for o único, a registrar com precisão as transformações de hábitos e costumes, o "modus vivendi" de um considerável segmento de representantes da juventude brasileira da última década.

 

"Maldita coincidência/Eles não usam black-tie". Jean-Claude Bernardet, Filme Cultura, ano XVI, maio 1983, no. 41/42, p. 73-75.

"Maldita coincidência" é uma meditação emocionada em torno de uma experiência de vida de determinada juventude nos anos 70, no Brasil e fora dele. Viveu-se um sonho utópico: vida comunitária, novas formas de relacionamento individual, vida à margem do sistema capitalista de produção, ecologia, drogas. "Maldita coincidência" é uma meditação desencantada em torno de uma utopia que se foi, não deu certo. O filme é uma antiutopia: não deu certo, mas do sonho sobraram vestígios maravilhosos, pedaços, fragmentos. O filme é de uma tristeza e de uma solidão cruel diante do que não se realizou, e ao mesmo tempo se maravilha diante dos escombros da utopia que por vezes atingem uma beleza deslumbrante. Talvez os mais belos momentos sejam as seqüências do loiro drogado, Jacques Suchodoski: as suas relações com Galizia, com Sérgio Mamberti, o momento em que se traveste e se maquia, a viagem. Talvez sejam também estes os mais cruéis: não se comunica, não fala, não reage. Fecha-se dentro de sua beleza. E uma personagem lhe diz: não há lugar para você na história. Esse desencantamento diante da utopia que não deu certo, essa desesperança, esse autismo levam o filme a uma narrativa fragmentária. As situações não se encadeiam, mas se justapõem; os personagens não evoluem; inclusive quando se modificam, suas atitudes diferentes ou contraditórias não são explicadas nem relacionadas entre si (a moça que se droga e a mesma moça que não se droga mais e faz macrobiótica). O tom do filme muda constantemente, passando pelo confessional (Sérgio Bianchi), o quase burlesco (Maria Alice Vergueiro, seus iogurtes e sua prisão de ventre), a paródia (o filme de terror na torre da casa), o improviso, a reflexão filosófica (letreiros), o patético (o enterro da criança), etc. Isso não quer dizer, como se alegou freqüentemente, que "Maldita coincidência" é desorganizado, parte em toadas as direções e não vai para nenhuma. Ao contrário: é um filme estruturado, cuja estrutura é a fragmentação; fragmentação essa que está desesperadamente em busca de uma ordem, de uma unidade, de uma coerência. A unidade poderia ser encontrada no próprio local geográfico onde a ação se desenvolve e as filmagens foram realizadas: uma casa em ruína. Que eu lembre, só uns poucos planos foram feitos fora da casa: a chegada de Jacques, a posição da câmara quando uma das atrizes pinta a fachada. Mas a proximidade espacial dos personagens num mesmo lugar não cria ordem, nem coesão. Nesta casa, só o lixo é ordenado. Na cabeça das pessoas, no seu comportamento, no relacionamento interindividual, ordem nenhuma. Tenta-se encontrar uma ordem. Na primeira seqüência, Maria Alice traz o aviso de despejo da casa e Galizia diz que previra isto, que eles precisam se reunir, que ele vive dizendo que precisa reunir, mas que essa reunião parece impossível. A última seqüência da ação na casa é, finalmente, a reunião. Só que é uma reunião que não reúne, é o maior desentendimento. E baixa um arcanjo apocalíptico de história em quadrinhos que os extermina a todos com sua espada punitiva. E já que a ordem que se busca não é encontrada dentro dos personagens e da casa, o filme vai buscar, de fora, um recurso artificial como que para conter todo esse esfacelamento: a ação na casa de abre e se fecha com um personagem que não pertence à comunidade. Patrício Bisso abre o filme como um espetáculo teatral, numa dança paródica, e fecha a ação morrendo ou desmaiando em cena. A primeira e a última seqüência de Bisso prensam a ação do filme como dois pesos que se colocam numa estante para impedir que despenquem os livros enfileirados. Vai se buscar mais do que isso. Falemos da última seqüência do filme. Aliás, o filme dá várias vezes a impressão de que vai acabar: quando acaba a ação da casa. Quando Sérgio Mamberti responde ao extermínio via arcanjo pelo suicídio coletivo via coquetel molotov com coca-cola. Quando o próprio diretor do filme faz a sua confissão. E o filme sempre continua. Essa acumulação de seqüências não relacionadas entre si é reveladora de como o filme é construído e também da busca: um ir sempre além para entender essa fragmentação e encontrar uma ordem, um princípio que organize e dê significação. Essa "desordem" na organização do filme, que só na aparência é desordem, é resultado da profunda sinceridade, honestidade emocional com que Sérgio Bianchi se jogou no seu filme e aceitou os riscos. Chegamos finalmente à verdadeira última seqüência, que reserva uma surpresa: uma senhora que não era personagem, num lugar que não fora visto antes (uma sala de apartamento, com estante de livros) dirige-se à câmara num longo monólogo sobre o trabalho. A vida só tem sentido trabalhando, mas não o trabalho escravo, o trabalho em que uma pessoa se realiza e que, por isso, é fonte de prazer. Ora, justamente duas coisas que não existem no filme: as pessoas não trabalham; um trecho do monólogo já tinha sido usado antes, OFF, sobre a seqüência da moça pintando, mal, solitariamente, um pedaço da fachada da casa. Mas que trabalho é esse? Quanto ao prazer, a utopia é sua busca, mas é o que os personagens não conseguem realizar. As carícias não levam a nada, a não ser a justapor solidões. Gozou na cabeça, diz um rapaz a outro. E a senhora que faz essa reflexão sobre o trabalho/prazer, apontando para uma direção oposta à que estes jovens perdidos vinham seguindo, é Lélia Abramo, alta, forte, cabelos esbranquiçados. É a imagem da mãe. Diante do descalabro da utopia fracassada, o filme faz como que um apelo à mãe, princípio de segurança e de unificação. A seqüência de Lélia Abramo, aparentemente de todo solta e gratuita, vem em realidade fechar coerentemente o filme. Não só pelo que foi dito no parágrafo anterior. Mas também porque perpassa pelo filme a temática da criança e da mãe. Na seqüência logo anterior à de Lélia Abramo, temos um depoimento do diretor contando que, quando criança, sua mãe (ou uma tia) vestiu a ele e a um primo de menininhas, e eles gostaram. O depoimento relata, mas não tece considerações a respeito. A mãe (ou sua substituta) teria traçado um destino para os dois meninos e os teria abandonado? Lélia Abramo figurando então, em oposição, uma mãe que propõe um caminho válido? E a criança? Um pai e uma mãe, que não conseguem se comunicar, deixam seu filho brincar sozinho até sua morte. A criança morta é enterrada no jardim da casa. O filme remonta, em duas seqüências de grande beleza visual, sonora e dramática, à experiência do parto. Numa delas, Jacques, maquiado e drogado, se arrasta de costas num estreito corredor imundo, espaço e movimentos corporais que podem sugerir uma dolorosa e nauseante saída do útero. Na outra, Célia Maracajá, após considerações ecológicas que o filme vinha fazendo, esforça-se, de noite, em arrancar uma raiz da terra. A tarefa é árdua e finalmente a raiz cede e aparece branca na imagem escura. No exato momento em que a raiz cede e sai da terra, na faixa sonora o choro de uma criança nascendo. É simultaneamente o choro de vida de uma criança que nasce e o grito de dor da raiz — ou da criança — arrancada violentamente. A utopia procurada e a casa podem ser uma busca para o reencontro da segurança e da harmonia que eram as da raiz antes de ser arrancada. Mas o nascimento é irreversível e o personagem de Lélia Abramo é provavelmente um apelo à mãe, não mais, talvez, a mãe que guarda o filho no ventre, mas a que encaminha para a criação e o prazer. Vou me valer de Lélia Abramo para dar um pulo: não há filme mais antagônico a "Maldita coincidência" que "Eles não usam black-tie", em que Lélia Abramo interpreta uma mãe e interpretava, na montagem original da peça, a mãe principal. Embora não se ambiente exclusivamente numa casa, "Black-tie" tem na casa de família seu centro. É aí que ocorrem as relações mais intensas entre os personagens. Podemos dizer que a casa familial é o centro geográfico e dramático do filme. E dentro da casa, o pai. É em torno dele que o mundo se organiza. O filho de Betty Mendes, antes de ser o filho de Ricelli, será o neto de seu Otávio. O pai tem uma história honrada, tem valores seguros, aponta para um futuro correto. Os valores do pai nunca são questionados pelo filme, nem propostos à discussão. Eles são a pedra de toque que permite avaliar tudo o mais. Após ter expulso o filho do paraíso (o mundo centralizado com valores seguros), o pai se reúne com a mãe para a metáfora dos feijões: num espaço fechado, num como que cela tumular ou célula essencial da verdade, eles vão separando os bons feijões dos maus. É justamente por estar embasado num mundo que tem um centro fixo e um só, bem como valores não questionados, que "Black-tie" pode ter uma linguagem tão oposta à de "Maldita coincidência" e se afirmar pela linearidade da narrativa, o encadeamento das situações dramáticas, a concatenação das seqüências e dos planos. "Black-tie" é o mundo ordenado e seguro, em oposição aos esfacelamentos de "Maldita coincidência". É de se perguntar se a receptividade que encontrou "Black-tie", pelo menos por parte do público jovem da Avenida Paulista, não se deve parcialmente ao fato de que o filme oferece um pai como princípio organizador àqueles que, como em "Maldita coincidência", vivem em busca de quem confiar, de quem dá significações certas e organizadas. "Black-tie" é a utopia encontrada e a expulsão do filho — aqui como na peça de Vianinha, "Rasga coração" — só confirma a sua solidez e coerência. Mas a organização centralizada de "Black-tie" e suas certezas também são uma busca, só que não confessada. "Black-tie" dá a impressão de ter sido realizado por uma geração sem herdeiros. Nos anos 50-60 não deu tempo de formar herdeiros. De repente, como que se aproveitando do vazio de uma geração que se sentiria órfã, tenta-se assumir o papel de pai. Tentativa que provavelmente se frustará e ficará no sonho compensatório que, visto sob esse prisma, o filme representa. Pois a coerência do sonho e da tentativa, aqui com em "Rasga coração", leva a expulsar o filho e deserdá-lo, o que nega o próprio projeto. "Black-tie" está tão em busca de filhos como "Maldita coincidência" em busca de mãe. Mas os filhos de "Maldita coincidência" não querem o pai de "Black-tie" e vice-versa. Quem sabe se não agradaria ao Oswald de Andrade do Matriarcado, Patriarcado e da crise da filosofia messiânica esse relacionamento entre os dois filmes: o mundo fechado de "Black-tie" dominado pelo pai que só pode expulsar o que ele não consegue dominar, e a mãe de "Maldita coincidência" que aponta para a síntese da produção e do prazer.