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Domingo, 14 de maio de 2000

A crônica de um impasse social
Sérgio Bianchi produz um retrato vigoroso da sociedade brasileira no fim de milênio
LUIZ ZANIN ORICCHIO

O título em si já é incômodo - Cronicamente Inviável. Torna-se mais provocativo quando se sabe que se refere ao Brasil. O filme é de Sérgio Bianchi e está em cartaz em São Paulo. Bianchi é um diretor sui generis.

Exerce uma arte associada ao entretenimento e não procura, em momento nenhum, agradar ao espectador. Ao contrário. Neste, e em seus filmes anteriores, como Romance ou A Causa Secreta, Bianchi busca o mal-estar, a dor de viver, o desconforto de existir em uma sociedade iníqua.

Cronicamente Inviável é uma espécie de antipresente para o Brasil em seus 500 anos. Faz, de nossa sociedade tropical, uma radiografia tão incômoda quanto exata. Quem são seus personagens? Gente de todas as classes, mostrada de maneira quase documental. Gente rica, gente pobre, classe média, miseráveis. Não há nada e nem ninguém que seja exatamente edificante nessa fauna humana. O cineasta retrata as elites como elas de fato parecem ser, predatórias, muito preocupadas com a manutenção de privilégios, pouco ou nada interessadas no País como um todo. Os pobres procuram sobreviver como podem e a classe média, espremida entre uns e outros, fornece um modelo acabado de alienação - seus valores e expectativas são de um estrato social ao qual ela não pertence. Não se encontra solidariedade com os desfavorecidos, nem mesmo por parte de quem veio de baixo.

Os intelectuais também não aparecem em sua melhor forma em Cronicamente Inviável. Um antropólogo viaja pelo País todo e produz teses bizarras sobre a condição geral da sociedade. Mais tarde, o espectador irá descobrir o motivo nada nobre de tanta viagem. Duas dondocas atropelam mendigos e, em vez de socorrerem as vítimas, produzem discursos bem articulados em que se isentam de culpa. Uma delas é clone de uma socióloga conhecida. Afirma que não tem culpa se o atropelado desrespeitou a lei, que não é possível se viver em um país no qual as pessoas não têm a mínima noção de contrato social e, em seguida, se manda, dizendo que não irá perder um compromisso importante por causa de gente como aquela.

Há quem diga que o retrato é cruel demais e, portanto, beira à caricatura.

Fala-se que os enquadramentos são desleixados, alguns atores não rendem, etc. Pode ser, e, bem analisado esteticamente, o filme não deixa de ter defeitos, alguns deles muito sérios. Nada disso, no entanto, tira sua força, seu frescor, seu empenho autoral. É uma das melhores coisas que o cinema nacional tem produzido nos últimos tempos.

E isso porque talvez reflita o ânimo do diretor em buscar alguma compreensão por meio de sua arte. Bianchi não faz um cinema auto-referente, como muita gente de sua geração. Não optou pelo bonitinho ou pelo mercado. Simplesmente escolheu um caminho visceral, necessário, inevitável para um certo tipo de disposição psicológia.

Por sorte, Cronicamente Inviável não é apenas um manifesto de raiva e impotência. Revela também inteligência de análise. Por exemplo, Bianchi situa-se a alguns anos-luz de distância de qualquer tendência nacional-popular. Se em algum momento flertou com o paternalismo, superou rapidamente a tentação, tão comum no cinema, como nas outras artes ditas populares, de separar os bons dos maus e mantê-los isolados em suas mônadas éticas. Claro, há exploradores e explorados, mas todos, de alguma forma, participam do mesmo universo hobbesiano. Todos, de um jeito ou de outro, associam-se na miséria coletiva, o que não os torna parceiros igualitários - há responsabilidades diferentes na gerência desse condomínio do caos.

Mas, segundo o filme, no fundo ninguém está isento de sua cota de responsabilidade, mesmo que seja por omissão, por ignorância ou embrutecimento gerado por uma vida dura demais. Essa distribuição democrática de uma culpa partilhada, embora de forma desigual, faz a novidade de Cronicamente Inviável. Aponta para um impasse, para um nó górdio social, que, aliás, pode ser observado todo o santo dia, em praticamente qualquer cidade, em qualquer canto de rua do País.

E por que toda essa desesperança não conduz ao cinismo? Sim, porque se afinal todo mundo tem lá sua parcela de culpa e ninguém é inteiramente vítima, pode-se pensar que é melhor cada um cuidar de sua vida e salve-se quem puder. Acontece que o filme passa tamanha indignação com tudo o que vê que o sofrimento passa a ser a sua assinatura autoral. Assim como a rebeldia, que, como se sabe, não rima com solução e nem passa de embrião de uma ação política.

Essa falta de projeto da sociedade como um todo é também uma característica do diretor. Quem olha a sociedade através do filme encontra-se tão alienado quanto ela. Só está consciente do próprio desespero. E este não é força suficiente para fazê-lo mover-se em uma direção ou em outra. Cronicamente Inviável é consciência perfeita da nossa paralisia. E, nesse caso, a consciência da necessidade não aponta sequer para um grau mínimo de liberdade.






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