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Quinta-feira, 20 de julho de 2000

Machado de Assis e o registro do intolerável
LUIZ ZANIN ORICCHIO

Uma mão amiga me levou até Pai contra Mãe, conto de Machado de Assis que abre uma coletânea organizada por Italo Moriconi. Deve ser um dos melhores de Machado, nosso mestre neste gênero e em outros também.

Em síntese, Pai contra Mãe é a história de um amor filial - ou dois, se se quiser. O protagonista, aquele sobre o qual o foco da narração se detém a maior parte do tempo, é um sujeito que vive de capturar escravos fugidos. Um expert. Nas ruas da cidade sabe, como ninguém, distinguir no meio da multidão um preto malandro, que escapou do senhor, de outro que está apenas circulando a serviço. Cândido Neves (é o nome do personagem) ganha a vida com as recompensas que recebe pela devolução dos fujões aos donos. É apenas um bom cidadão, exercendo uma profissão honesta, embora um tanto instável.

Cândido casa com uma moça chamada Clara e logo ela fica grávida. Na véspera de ter o primeiro filho, o casal Cândido Neves-Clara atravessa um drama econômico. Os escravos fugidos escasseiam, a concorrência aumenta, Cândido não está conseguindo sustentar a casa.

A família, que inclui uma tia solteirona, passa necessidade. Se as coisas não mudarem, a criança terá de ser entregue à caridade, como enjeitada.

Cândido precisa desesperadamente ganhar dinheiro. Para sua sorte, há uma negra fugida, chamada Arminda, que promete boa recompensa. Ela mesma está grávida, como estivera a mulher de Cândido.

Mas a gravidez de uma escrava não é igual à de uma moça chamada Clara. Numa sociedade escravocrata, não somam na mesma coluna. Cândido é um bom pai, um excelente pai. Arminda poderia ser uma excelente mãe, ou, no caso, uma mãe diligente, que gerasse uma cria saudável, tarefa reprodutora que se esperava de uma mãe escrava. Mas, naquele Brasil, e na trama imaginada por Machado, a boa paternidade de Cândido torna-se incompatível com a boa maternidade de Arminda. Pai contra mãe.

Vamos deixar de lado o estilo de Machado, para não cair no lugar-comum e superlativos de praxe. Ao ler o conto, a primeira surpresa é que alguém possa, algum dia, ter dito que Machado era um gênio, mas que a realidade social do seu tempo não entrava em sua obra. Esse conto é prova do contrário. Contém tudo o que há para saber sobre uma sociedade de escravos.

Nela, há as pessoas-cidadãs e há as pessoas-objetos. Gente e coisa.

No fim da história, uma réstia de luz passa pela consciência de Cândido, mas ele logo se recupera porque Arminda afinal é apenas uma escrava e "nem todas as crianças vingam", como ele mesmo diz. Ordem natural das coisas, que dispõe de toda uma estrutura, digamos assim, ideológica, para justificar fatos e atitudes. Feitas as contas, Cândido não é mau sujeito e, afinal, quem pode lhe censurar a devoção ao filho recém-nascido?

O conto é de 1906 e data de dois anos antes da morte do escritor. A escravidão fora abolida em 1888 e portanto Machado aparentemente falava de coisas antigas. Lançava um olhar retrospectivo ao passado. Na verdade, o texto funciona como um sinistro raio X das relações sociais do Brasil-Império. Imagino alguém que vivesse na época dizendo que "não era bem assim". Talvez propusesse uma visão mais adocicada das relações entre senhores e seus escravos, uma visão mais, digamos, à maneira de Gilberto Freyre. A percepção de Machado, no entanto, é terrível, intragável para quem tenha sido ator social daquele tempo. Realista até a medula, conforme sua maneira cética de ser humanista.

Além do prazer que representa em si mesma, a leitura do conto de Machado bem pode jogar luz sobre uma situação do presente. Há um momento em que obras muito ásperas terminam por sofrer rejeição pelo incômodo que causam. É o que pode estar começando a acontecer com o filme Cronicamente Inviável, de Sérgio Bianchi. Num primeiro momento, foi quase unanimidade crítica. Agora, aparecem restrições, baseadas em seu conteúdo ideológico: "Não apresenta saída, é niilista, despolitizado." Qual o seu grande pecado? Simples, ele registra, com naturalidade, o cinismo empregado pelos brasileiros para contornar seus impasses sociais. Tudo é justificado, tudo jogado para baixo do tapete. Por isso, e não por outro motivo, parece virtualmente inassimilável.






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