São Paulo, quinta-feira, 18 de maio de 2000


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OTAVIO FRIAS FILHO

Hiroshima brasileira

O jornalista Roberto Muylaert, responsável por gestões profícuas à frente da Bienal de São Paulo e da TV Cultura, acaba de lançar uma biografia do goleiro Barbosa, um dos maiores que já houve, tristemente celebrizado, porém, pelo gol que deu a vitória ao Uruguai naquela "fatídica" tarde de 16 de julho de 1950.
A oportunidade do lançamento é óbvia Barbosa morreu no mês passado, o cinquentenário do jogo será em julho. Não sendo o primeiro livro sobre aquele trágico evento, que Nelson Rodrigues, sempre hiperbólico, chamou de "nossa Hiroshima", o trabalho de Muylaert interessa e comove ao adotar o ângulo da vítima-vilão.
Somos lembrados do clima de "já ganhou" na reconstituição de cada detalhe agourento: o atropelo de homenagens que impediu os jogadores de almoçar, o acidente de trânsito que envolveu o ônibus da seleção na entrada do Maracanã, a bandeira hasteada de cabeça para baixo, o discurso em que o prefeito do Rio exigia a vitória.
"Barbosa" sumariza o ambiente da época, mas sua ênfase é pessoal: o autor foi um dos 200 mil que assistiram à célebre partida, o miolo do livro é fruto de longas entrevistas com o goleiro. Em 1963, Barbosa foi presenteado com as traves do gol, que queimou num churrasco com amigos, sem exorcizar seu pesadelo íntimo.
O livro traz um anexo fotográfico, onde consta até uma radiografia das mãos do arqueiro, a calcificação das fraturas visível nos dedos, além da narração do gol "fatídico", aos 34 do segundo tempo, pelo locutor da rádio Nacional: "Gol! Gol do Uruguai! Ghiggia! Segundo gol do Uruguai. Dois a um, ganha o Uruguai".
É justo que as nações cultivem seus mitos, e no país do futebol a derrota de 50 é um dos mais presentes na imaginação coletiva. Derrota terrível, que converteu a enorme expectativa de uma vitória dada como certa em humilhação acachapante, tornada ainda mais cruel pelo desdém com que fora tratada a pretensão da "celeste".
1950 foi, como dizem os antropólogos, um rito de passagem. Por amargo que tenha sido ver a Copa do Mundo, pela primeira vez tão ao alcance das mãos, escapulir na undécima hora, a derrota conferiu um atestado de maturidade ao futebol brasileiro e à atitude espiritual do torcedor, que nunca mais seriam os mesmos.
Aprendemos a não subestimar o adversário e ficaremos a repetir, para o resto dos tempos, que "futebol é uma caixinha de surpresas". Como o próprio autor observa em seu livro, o aprendizado doloroso de 50 foi o que deu fundamento à humildade, ao brio e ao afinco da preparação técnica da equipe vitoriosa em 58 e em 70.
Gostamos de ver, no futebol, a expressão peculiar da cultura brasileira. Com todas as ressalvas a esse costume, talvez não seja absurdo considerar nossas mazelas enquanto país sinistramente retratadas no recém-lançado filme "Cronicamente Inviável", de Sergio Bianchi- como um longo, tenebroso, mas superável 1950.


"Barbosa Um Gol Faz Cinquenta Anos", de Roberto Muylaert, RMC Editora, 221 págs

Otavio Frias Filho escreve às quintas-feiras nesta coluna.


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