São Paulo, Segunda-feira, 10 de Julho de 2000
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OPINIÃO ECONÔMICA

Cronicamente inviável

JOÃO SAYAD

A corrupção ocupa as primeiras páginas dos jornais. Está em todos os lugares do governo, Legislativo e Judiciário.
Apesar do que dizem os "reformadores de Estado", está também, como sempre esteve, no setor privado, isto é, nas relações do setor privado com o setor privado.
A impunidade tem se reduzido, graças à democratização, à liberdade de imprensa, à independência entre os poderes, à autonomia e aos abusos do Ministério Público.
Ainda são válidas, neste ano 2000, as críticas que se faziam à UDN, meio século atrás. A corrupção, assim como a inflação, não é o principal problema do país. É apenas sintoma, restrito às elites de todas as classes, e não causa de nossos problemas.
O que é ser santo -isto é, puro e perfeito- no Brasil?
Salvar a empresa que você dirige, demitindo mil funcionários para preservar os empregos de outros mil? A concorrência ou a providência olhará pelos outros?
Aplicar o capital a juros para salvar o capital?
Contratar sem registro porque é impossível pagar período integral e registrar?
Sonegar impostos para fazer face à concorrência de outros sonegadores ou pagar impostos e fechar a empresa?
Cortar todas as árvores de Rondônia e do Acre, antes que os malaios acabem com elas para ganhar dinheiro -que você depois dá ao Greenpeace para reconstruir a floresta?
As perguntas não são críticas nem ironias a nenhum governo; não acho que possam ser respondidas com reforma tributária, Ibama nem outra coisa. Pergunto apenas para definir o que é a corrupção.
O capelão militar norte-americano que dava extrema-unção aos soldados que morreram ao jogar bombas de napalm na pequena vila de guerrilheiros vietnamitas é santo? O nazista simpático que se despede dos judeus nos trens de gado com lágrimas nos olhos é corrupto? Um lenhador campeão de corte de pau-brasil é santo?
A corrupção é sistêmica.
O filme "Cronicamente Inviável" trata desse tema. Não fala em corrupção, mas descreve todos nós brasileiros, de todas as cores, profissões e classes sociais, como individualistas que, na hora do perigo, do acidente, do assalto ou da redenção, se mostram como são: roubam, salvam o seu e fogem. Fazem quase tudo legalmente.
Talvez a resposta esteja no título do filme. Não concordo que o país seja cronicamente inviável. Mas, hoje, o vemos como inviável de forma aguda. Corrupção é apenas a hipocrisia que esconde o ceticismo e a vontade fraca.
Proclamamos a crença no futuro do país. Basta acabar com a inflação, privatizar, reduzir o "custo Brasil", combater a corrupção e pronto, o país começará a crescer, a desigualdade diminuirá e teremos orgulho de nós mesmos daqui a 300 anos.
Seremos heróis respeitados, como os portugueses degredados para o Brasil nos primeiros anos após o Descobrimento e que hoje poderiam ser nomes de rua porque sobreviveram entre canibais, descobriram a foz de um rio qualquer e aumentaram as fronteiras do país.
Também escravizaram índios, mataram espanhóis e franceses, roubaram e foram cruéis. Fizeram tudo isso para salvar a si mesmos. São corruptos ou, do ponto de vista histórico, corrupção não tem importância?
Os corruptos brasileiros são corruptos porque, mesmo não sendo cientistas sociais, economistas, filósofos ou profetas, não acreditam que o país vai bem. Fazem discurso, definem a nova agenda do Brasil moderno -abertura com exclusão- e tratam de salvar a própria pele, pegam o dinheiro e fogem para algum lugar.
A corrupção pode estar aumentando. Não pode ser pela impunidade. Poderia ser a falta de esperança, fé, projeto ou idéia que nos empolgue.
A corrupção é maior à direita. No fundo, o corrupto de direita concorda com a crítica da esquerda sobre o Brasil contemporâneo. Apenas não tem ânimo para propor mudança, é hipócrita para revelar a própria desesperança. Prefere se safar sozinho.
O avião começa a sacudir, a janela brilha em vermelho com a turbina pegando fogo. A aeromoça anuncia pelo rádio: "Estamos enfrentando pequena turbulência, por favor apertem os cintos". Estapeia com energia a passageira da primeira fila que grita, histérica. A ordem tem de ser mantida.
Beija apaixonadamente o piloto, coloca o pára-quedas e salta, com lágrimas nos olhos, cheia de compaixão pelos passageiros que vão se estatelar lá embaixo nas copas das árvores queimadas da floresta atlântica.


João Sayad, 53, economista, professor da Faculdade de Economia e Administração da USP e ex-ministro do Planejamento (governo José Sarney); é autor de "Que País é Este?" (editora Revan); escreve às segundas-feiras nesta coluna.
E-mail - jsayad@ibm.net


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