São Paulo, quinta-feira, 13 de julho de 2000


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FERNANDO DE BARROS E SILVA

Um intelectual brasileiro

Um dos achados de "Cronicamente Inviável", o filme de Sérgio Bianchi, é o seu intelectual-protagonista, o antropólogo Alfredo, representado por Umberto Magnani. Ninguém, ao que parece, deu muita bola para o fato de que ele seja colega de ofício de Ruth Cardoso. A força do filme, no entanto, deve muito à abordagem antropológica que faz do país, como se nos dissesse que somos uma "sociedade de índios", que sobrevive e se reproduz idêntica a si mesma há 500 anos, não apesar, mas justamente por ser cronicamente inviável.
Na distinção clássica feita por Lévi-Strauss entre "sociedades quentes", que têm história cumulativa, mudam e evoluem no tempo, e "sociedades frias", como que refratárias à história, sempre fechadas sobre si mesmas, o Brasil visto por Bianchi ficaria entre as últimas. Sua história é circular -ou gaguejante- e o progresso nela se faz à custa do atraso, que reproduz indefinidamente, deixando intacta a desigualdade social -o tema do filme.
Mas Alfredo, mais do que antropólogo, é o melhor retrato do (que sobrou do) intelectual brasileiro. Não chega a ser niilista. Falta-lhe energia, ainda que destrutiva, para tanto. É antes um observador solitário e abatido em sua rabugice crônica, desengajado e desiludido, mais indiferente do que cínico, pois o cinismo ainda é uma forma de revolta impotente. Nada lhe é decisivo além de sua sobrevivência.
Logo nas primeiras cenas do filme o vemos, pálido e suado, numa praia qualquer da Bahia, sentado numa cadeira enquanto acompanha uma reunião de farofeiros. Com seu gravadorzinho portátil à mão, vai registrando impressões aleatórias a partir do que vê. A indolência daqueles seres à milanesa o faz lembrar de Montesquieu e das "teorias" do século 18, que atribuíam ao calor dos trópicos -que "engrossa o sangue e impede o raciocínio"- o nosso déficit civilizacional.
Na sequência, sem qualquer motivo, um descendente de índios é espancado na praia por dois policiais, à vista de todos. Alfredo olha a cena e agrega novos argumentos à imagem depreciada que vai compondo do país. Seu método consiste em desqualificar os objetos que fazem da antropologia uma ciência tão simpática -o Carnaval, o samba, a miscigenação etc.
Mas, já no final do filme, ficamos sabendo que o antropólogo, autor do livro "Brasil Ilegal", completa seu "orçamento" transportando órgãos ilegais (este o motivo real de suas viagens pelo país). Como ele explica, "escrever livros não dá dinheiro pra ninguém".
Assim como Glauber, em "Terra em Transe", fez de Paulo Martins (Jardel Filho) o protótipo do intelectual dos anos 60, Alfredo é o representante da "intelligentsia" na era FHC. Exasperado e contraditório, Martins vivia o dilema entre a arte e a política como um drama existencial, decisivo. Tanto seu engajamento como sua derrocada se revestem de tons épicos, o que hoje nos soa um tanto ridículo. Alfredo, pelo contrário, é prosaico até o osso e, mesmo sendo sistematicamente do contra, está mais preocupado em tocar o serviço. No fim, revela-se apenas mais um trambiqueiro entre tantos.
A imagem serve tanto aos intelectuais da esquerda prostrada, os nossos "fracassomaníacos", quanto a certa elite tucana, que, por enquanto, não trafica órgãos, mas só influência.


Fernando de Barros e Silva é editor do "Painel" da Folha. Hoje, excepcionalmente, não é publicado o artigo de Otavio Frias Filho, que escreve às quintas-feiras nesta coluna.


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