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Sexta-feira, 5 de maio de 2000





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Bianchi traça painel da desigualdade
O filme `Cronicamente Inviável', metáfora poderosa da vida no Brasil, hoje, é a melhor e mais pungente obra de um cineasta inconformista

O mais radical dos cineastas brasileiros tem filme novo em exibição.

Sérgio Bianchi, realizador, entre outros, de Maldita Coincidência, Mato Eles? e Romance, obras poderosas e contundentes, volta hoje às telas com Cronicamente Inviável. Passaram-se seis anos desde seu último longa, A Causa Secreta, rodado em 1994. Durante esse tempo, o quadro que o cineasta paranaense traça do Brasil não foi amenizado, nem se tornou mais otimista.

Cronicamente Inviável remete, do título brilhante e sombrio ao roteiro cruel, ao Brasil predatório e corrompido da era Fernando Henrique Cardoso.

Em foco, ocupando o centro das atenções, está o abismo que separa as elites das hordas de miseráveis.

Ao redor de um restaurante em São Paulo giram as personagens de Bianchi.

Como nas histórias medievais, que reuniam todas as classes sociais em suas metafóricas "naus de insensatos", Cronicamente Inviável traça um painel em que há representantes dos donos do poder, da burguesia, dos trabalhadores, dos miseráveis. Os temas que o filme abarca vão da destruição do ambiente à violência urbana, ao tráfico de crianças, à venda de órgãos infantis.

País de pesadelo É um país de pesadelo, esse que surge na tela em Cronicamente Inviável. Amanda (Dira Paes), descendente de índios e negros, trabalha como gerente do restaurante do sofisticado homossexual Luís (Cecil Thiré) e dirige a rede de tráfico de crianças e de órgãos. O simpático filósofo Alfredo (Umberto Magnani), que percorre o Brasil na tentativa de entender seus sistemas viciados de dominação, é portador dos órgãos vendidos por Amanda.

Completam a lista de personagens Maria Alice (Beth Goffman), uma angustiada burguesa que se sente culpada pela miséria circundante, seu marido, Carlos (Daniel Dantas), que pretende tirar partido da bagunça brasileira, e Adam (Dan Filip Stulbach), jovem amoral e revoltado que fugiu do interior do Paraná para tentar a vida em São Paulo, onde vai trabalhar no restaurante de Luís.

Embora seja concentrado ali o centro da ação, Cronicamente Inviável inclui cenários que vão dos baixos de viadutos em que dormem os sem-teto às praias da Bahia, paradisíacas, embora poluídas, e às vastas áreas desmatadas da região amazônica.

Com um elenco extremamente eficiente (destaques para Umberto Magnani, Beth Goffman e Dan Stulbach) e um roteiro poderoso, bem amarrado, Cronicamente Inviável mostra ao espectador um quadro insuportável. O único momento de afeto verdadeiro que se vê na tela é aquele em que uma moradora de rua põe seu filho para dormir com uma oração amorosamente inventada.

Dispensando simpatias O diretor, que deu à obra ritmo veloz e estrutura truncada, brincando com o "efeito de distanciamento" de Bertolt Brecht, não alicia o público nem quer sua simpatia. O filme, duro, raivoso, mostra não a face oficial do Brasil, mas o país das contradições absurdas, dos festejos desastrosos dos 500 anos.

Exemplo perfeito dessa situação crítica é Maria Luísa, vivida por Beth Goffman. A dona de casa, consciente da crise social, é na verdade uma mulher egoísta que se vinga de um assalto promovendo a discórdia entre crianças de rua.

Outro momento exemplar do filme é a passagem em que o jovem Adam é levado por um cozinheiro do restaurante (Leonardo Vieira, em segura atuação) a uma sauna gay, onde o jovem ouve conselhos sobre como ganhar dinheiro com a prática do sexo pago.

E a síntese do filme está em um par de cenas cruéis, nas quais dois menores carentes são atropelados e abandonados na rua por burguesas anônimas, vividas pelas ótimas Cláudia Mello e Maria Alice Vergueiro. Obrigatório, Cronicamente Inviável é a melhor obra de Bianchi, cineasta explosivo, coerente, inconformado.


Alberto Guzik
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