O título do novo filme de Sérgio Bianchi,
Cronicamente Inviável, que estréia neste mês, é
bastante apropriado. Há um certo excesso na quantidade
de histórias, idéias e discursos colocados lado a lado
numa mesma trama. Tudo para tentar provar a
inviabilidade social, política e econômica do país. O
filme trata, de um mesmo fôlego, de problemas como
tráfico de orgãos, venda de crianças, violência
policial, acampamento de sem-terras, queimadas na
Amazônia etc., etc. A geografia é igualmente variada:
passa-se por Santa Catarina, Rondônia, Rio, São Paulo,
Bahia. Embora díspares, as teses se amarram de forma
interessante no roteiro. Os personagens principais se
encontram num sofisticado restaurante em São Paulo. No
elenco, estão Cecil Thiré, Betty Gofman, Daniel Dantas e
Dan Filip Stulbach, entre outros. Todos muito
convincentes na pele de seus personagens, que são em sua
maioria desonestos. Em crueldade, segundo o filme, os
brasileiros não perdem para ninguém. Cai-se aí em
perigosas generalizações... Aliás, todos os personagens
usam a mesma linguagem na defesa de suas opiniões, o que
faz pensar que o diretor está sempre onipresente,
falando por meio da boca deles.
O falso documentário
de nossas verdadeiras aflições
Cronicamente
Inviável, de Sérgio
Bianchi, retrata um Brasil em que o arranca-rabo de
classes se sobrepõe às ilusões
integracionistas
Por Reinaldo Azevedo
Cronicamente Inviável, de
Sérgio Bianchi, é o filme da década no Brasil. E não vai
aqui aquele sestro muito comum na imprensa do "maior
isso, maior aquilo". Explica-se a afirmação: nenhuma
outra obra conseguiu retratar com tanta crueza e
precisão o que tem sido o país desses anos, o país das
reformas efeagacianas, das ilusões da miscigenação
harmônica, dos festejos – devidamente resguardados pela
PM baiana – dos 500 anos de descobrimento. Bianchi cospe
na sala de visitas de um Brasil que tem uma Secretaria
Nacional de Direitos Humanos, que indeniza famílias de
desaparecidos políticos, mas que não consegue acabar com
a tortura a presos comuns ou impedir que menores sejam
degolados por seus pares na Febem.
O filme é um falso documentário
(segue a estrutura de um, mas é ficção) de flagrantes da
realidade brasileira, unidos pela narração em off
de um professor universitário (Umberto Magnani) e pela
parcela, vamos dizer, burguesa da sociedade, que se
reúne num restaurante da moda para destilar seus
cinismos e piedades. E esses são dois dos grandes
achados de Bianchi.
O tal professor – atenção!, um
doutor na USP (em greve) ganha menos que R$ 3 mil
mensais – , à luz do dia, escreve livros de crítica
social e, na surdina, ganha a vida de uma maneira não
muito ortodoxa. Tudo o que ele vê (e o olho do
espectador acompanha sua câmera apocalíptica) é cisão,
incomunicabilidade, confronto e humilhação do mais
fraco. Bianchi – ó suprema transgressão! – parece achar
que há, quando menos, uma espécie de arranca-rabo de
classes no país, já que falar em luta talvez suponha um
corpo teórico que o filme não maneja nem mesmo
comporta.
Se o diretor fosse ingênuo,
mostraria, como a outra face da moeda, uma elite de
endinheirados plutocratas, de insensíveis sórdidos, de
anti-heróis da novela das oito. Mas não. Assim como os
seus deserdados não são impolutos, seus bem-nascidos têm
a nossa cara, falam como nós, pensam como nós, dominam o
instrumental teórico e os desencantos que são os nossos.
Eles são a fatia que foi (fomos?) confortada pelo Brasil
tucano e pós-tucano: lúcida, consciente, crítica,
cidadã, um pouco safada e inoperante. Mesmo quando se
dedica sinceramente à caridade, é como se quisesse bater
a carteira moral do outro para satisfazer a sua cupidez
de culpa; é como se quisesse extorquir desse outro a sua
face feia, suja e malvada – que lhe garantia ao menos
uma identidade – e pôr no lugar algum modelo de pobreza
viável, limpinha, escoimada da agressividade. Prestem
atenção à personagem da sempre excelente Betty Goffman.
Depois, leiam um discurso oficial – qualquer um de FHC
serve – e percebam ali a fala social canibalizada
pelo suposto realismo do possível, despotencializada e
tornada finalmente peça de extravagância teórica e
inoperância prática. FHC, eu e você somos, pois, os
canibais bacanas de Cronicamente Inviável. E
Bianchi não livra nem a própria cara. Em vários
momentos, o filme se distancia da impressão de
realidade, da verossimilhança, para se mostrar, ele
também, um discurso rodando em falso. Um trecho chega a
ser "refilmado" porque "explícito demais"...
"Bem – poderia perguntar o leitor
–, não há saídas?" Não na obra de Bianchi ao menos.
Talvez bastasse dizer que filmes não foram feitos para
consolar ninguém, que, para tanto, já existem as
religiões, as ideologias, a TV... Mas não basta, eu sei,
para responder à inquietação de quem, até por bons
motivos, acha que o otimismo é moralmente superior ao
pessimismo. Talvez esse espectador devesse se debruçar
sobre a decisão do FED, banco central americano, de
aumentar em 0,5 ponto percentual a sua taxa básica de
juros e acompanhar os efeitos que tal medida provocou no
resto do mundo, inclusive em terras nativas.
E então saberá por que o Brasil, a
despeito de tudo o que por aqui também dá certo, é, de
fato, cronicamente inviável. Ao menos para aquela fatia
que não foi convidada para o convescote. E encerro com
uma piada muito comum entre os que conhecem o mercado
financeiro. Lá se diz, numa referência às bolsas de
valores, com riso às escâncaras, que o mundo se divide
entre os “comprados”, os “vendidos” e o povo.
Se Bianchi incomoda, sempre haverá
um Bossa Nova para consolar na sala ao lado. Ali,
povo não serve nem para
figurante.