A crônica de um impasse social
Sérgio Bianchi produz um retrato
vigoroso da sociedade brasileira no fim de milênio
LUIZ ZANIN ORICCHIO
O título em si já é incômodo - Cronicamente Inviável. Torna-se mais
provocativo quando se sabe que se refere ao Brasil. O filme é de Sérgio
Bianchi e está em cartaz em São Paulo. Bianchi é um diretor sui generis.
Exerce uma arte associada ao entretenimento e não procura, em momento
nenhum, agradar ao espectador. Ao contrário. Neste, e em seus filmes
anteriores, como Romance ou A Causa Secreta, Bianchi busca o mal-estar, a
dor de viver, o desconforto de existir em uma sociedade iníqua.
Cronicamente Inviável é uma espécie de antipresente para o Brasil em
seus 500 anos. Faz, de nossa sociedade tropical, uma radiografia tão
incômoda quanto exata. Quem são seus personagens? Gente de todas as
classes, mostrada de maneira quase documental. Gente rica, gente pobre,
classe média, miseráveis. Não há nada e nem ninguém que seja exatamente
edificante nessa fauna humana. O cineasta retrata as elites como elas de
fato parecem ser, predatórias, muito preocupadas com a manutenção de
privilégios, pouco ou nada interessadas no País como um todo. Os pobres
procuram sobreviver como podem e a classe média, espremida entre uns e
outros, fornece um modelo acabado de alienação - seus valores e
expectativas são de um estrato social ao qual ela não pertence. Não se
encontra solidariedade com os desfavorecidos, nem mesmo por parte de quem
veio de baixo.
Os intelectuais também não aparecem em sua melhor forma em
Cronicamente Inviável. Um antropólogo viaja pelo País todo e produz teses
bizarras sobre a condição geral da sociedade. Mais tarde, o espectador irá
descobrir o motivo nada nobre de tanta viagem. Duas dondocas atropelam
mendigos e, em vez de socorrerem as vítimas, produzem discursos bem
articulados em que se isentam de culpa. Uma delas é clone de uma socióloga
conhecida. Afirma que não tem culpa se o atropelado desrespeitou a lei,
que não é possível se viver em um país no qual as pessoas não têm a mínima
noção de contrato social e, em seguida, se manda, dizendo que não irá
perder um compromisso importante por causa de gente como aquela.
Há quem diga que o retrato é cruel demais e, portanto, beira à
caricatura.
Fala-se que os enquadramentos são desleixados, alguns atores não
rendem, etc. Pode ser, e, bem analisado esteticamente, o filme não deixa
de ter defeitos, alguns deles muito sérios. Nada disso, no entanto, tira
sua força, seu frescor, seu empenho autoral. É uma das melhores coisas que
o cinema nacional tem produzido nos últimos tempos.
E isso porque talvez reflita o ânimo do diretor em buscar alguma
compreensão por meio de sua arte. Bianchi não faz um cinema
auto-referente, como muita gente de sua geração. Não optou pelo bonitinho
ou pelo mercado. Simplesmente escolheu um caminho visceral, necessário,
inevitável para um certo tipo de disposição psicológia.
Por sorte, Cronicamente Inviável não é apenas um manifesto de raiva e
impotência. Revela também inteligência de análise. Por exemplo, Bianchi
situa-se a alguns anos-luz de distância de qualquer tendência
nacional-popular. Se em algum momento flertou com o paternalismo, superou
rapidamente a tentação, tão comum no cinema, como nas outras artes ditas
populares, de separar os bons dos maus e mantê-los isolados em suas
mônadas éticas. Claro, há exploradores e explorados, mas todos, de alguma
forma, participam do mesmo universo hobbesiano. Todos, de um jeito ou de
outro, associam-se na miséria coletiva, o que não os torna parceiros
igualitários - há responsabilidades diferentes na gerência desse
condomínio do caos.
Mas, segundo o filme, no fundo ninguém está isento de sua cota de
responsabilidade, mesmo que seja por omissão, por ignorância ou
embrutecimento gerado por uma vida dura demais. Essa distribuição
democrática de uma culpa partilhada, embora de forma desigual, faz a
novidade de Cronicamente Inviável. Aponta para um impasse, para um nó
górdio social, que, aliás, pode ser observado todo o santo dia, em
praticamente qualquer cidade, em qualquer canto de rua do País.
E por que toda essa desesperança não conduz ao cinismo? Sim, porque se
afinal todo mundo tem lá sua parcela de culpa e ninguém é inteiramente
vítima, pode-se pensar que é melhor cada um cuidar de sua vida e salve-se
quem puder. Acontece que o filme passa tamanha indignação com tudo o que
vê que o sofrimento passa a ser a sua assinatura autoral. Assim como a
rebeldia, que, como se sabe, não rima com solução e nem passa de embrião
de uma ação política.
Essa falta de projeto da sociedade como um todo é também uma
característica do diretor. Quem olha a sociedade através do filme
encontra-se tão alienado quanto ela. Só está consciente do próprio
desespero. E este não é força suficiente para fazê-lo mover-se em uma
direção ou em outra. Cronicamente Inviável é consciência perfeita da nossa
paralisia. E, nesse caso, a consciência da necessidade não aponta sequer
para um grau mínimo de liberdade.
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