Machado de Assis e o registro do
intolerável
LUIZ ZANIN ORICCHIO
Uma mão amiga me levou até Pai contra Mãe, conto de Machado de Assis
que abre uma coletânea organizada por Italo Moriconi. Deve ser um dos
melhores de Machado, nosso mestre neste gênero e em outros também.
Em síntese, Pai contra Mãe é a história de um amor filial - ou dois,
se se quiser. O protagonista, aquele sobre o qual o foco da narração se
detém a maior parte do tempo, é um sujeito que vive de capturar escravos
fugidos. Um expert. Nas ruas da cidade sabe, como ninguém, distinguir no
meio da multidão um preto malandro, que escapou do senhor, de outro que
está apenas circulando a serviço. Cândido Neves (é o nome do personagem)
ganha a vida com as recompensas que recebe pela devolução dos fujões aos
donos. É apenas um bom cidadão, exercendo uma profissão honesta, embora um
tanto instável.
Cândido casa com uma moça chamada Clara e logo ela fica grávida. Na
véspera de ter o primeiro filho, o casal Cândido Neves-Clara atravessa um
drama econômico. Os escravos fugidos escasseiam, a concorrência aumenta,
Cândido não está conseguindo sustentar a casa.
A família, que inclui uma tia solteirona, passa necessidade. Se as
coisas não mudarem, a criança terá de ser entregue à caridade, como
enjeitada.
Cândido precisa desesperadamente ganhar dinheiro. Para sua sorte, há
uma negra fugida, chamada Arminda, que promete boa recompensa. Ela mesma
está grávida, como estivera a mulher de Cândido.
Mas a gravidez de uma escrava não é igual à de uma moça chamada Clara.
Numa sociedade escravocrata, não somam na mesma coluna. Cândido é um bom
pai, um excelente pai. Arminda poderia ser uma excelente mãe, ou, no caso,
uma mãe diligente, que gerasse uma cria saudável, tarefa reprodutora que
se esperava de uma mãe escrava. Mas, naquele Brasil, e na trama imaginada
por Machado, a boa paternidade de Cândido torna-se incompatível com a boa
maternidade de Arminda. Pai contra mãe.
Vamos deixar de lado o estilo de Machado, para não cair no lugar-comum
e superlativos de praxe. Ao ler o conto, a primeira surpresa é que alguém
possa, algum dia, ter dito que Machado era um gênio, mas que a realidade
social do seu tempo não entrava em sua obra. Esse conto é prova do
contrário. Contém tudo o que há para saber sobre uma sociedade de
escravos.
Nela, há as pessoas-cidadãs e há as pessoas-objetos. Gente e coisa.
No fim da história, uma réstia de luz passa pela consciência de
Cândido, mas ele logo se recupera porque Arminda afinal é apenas uma
escrava e "nem todas as crianças vingam", como ele mesmo diz. Ordem
natural das coisas, que dispõe de toda uma estrutura, digamos assim,
ideológica, para justificar fatos e atitudes. Feitas as contas, Cândido
não é mau sujeito e, afinal, quem pode lhe censurar a devoção ao filho
recém-nascido?
O conto é de 1906 e data de dois anos antes da morte do escritor. A
escravidão fora abolida em 1888 e portanto Machado aparentemente falava de
coisas antigas. Lançava um olhar retrospectivo ao passado. Na verdade, o
texto funciona como um sinistro raio X das relações sociais do
Brasil-Império. Imagino alguém que vivesse na época dizendo que "não era
bem assim". Talvez propusesse uma visão mais adocicada das relações entre
senhores e seus escravos, uma visão mais, digamos, à maneira de Gilberto
Freyre. A percepção de Machado, no entanto, é terrível, intragável para
quem tenha sido ator social daquele tempo. Realista até a medula, conforme
sua maneira cética de ser humanista.
Além do prazer que representa em si mesma, a leitura do conto de
Machado bem pode jogar luz sobre uma situação do presente. Há um momento
em que obras muito ásperas terminam por sofrer rejeição pelo incômodo que
causam. É o que pode estar começando a acontecer com o filme Cronicamente
Inviável, de Sérgio Bianchi. Num primeiro momento, foi quase unanimidade
crítica. Agora, aparecem restrições, baseadas em seu conteúdo ideológico:
"Não apresenta saída, é niilista, despolitizado." Qual o seu grande
pecado? Simples, ele registra, com naturalidade, o cinismo empregado pelos
brasileiros para contornar seus impasses sociais. Tudo é justificado, tudo
jogado para baixo do tapete. Por isso, e não por outro motivo, parece
virtualmente inassimilável.
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