|
Texto Anterior
| Próximo
Texto | Índice
+
cinema "Cronicamente Inviável", filme de Sérgio Bianchi,
esquadrinha a ética duvidosa do Brasil de hoje O
pacto do cinismo
Maria Rita Kehl especial para a Folha
A realidade não interessa às pessoas", lamenta-se o protagonista de
"Cronicamente Inviável", quase no fim desse filme em que o público é
submetido a um verdadeiro tratamento de choque diante de uma cruel seleção
do que há de pior na realidade brasileira. A fala do personagem
representado por Humberto Magnani -um sociólogo empenhado em coletar e
comentar criticamente fatos que denunciem que o Brasil é inviável- é
contestada pelo público do filme, que vem recebendo muito bem a má
notícia. Ao contrário do que aconteceu com outros filmes igualmente
críticos e indignados do cineasta Sérgio Bianchi, este "Cronicamente
Inviável" não passou despercebido e vem fazendo sucesso, principalmente
junto a um público mais jovem, habitualmente avesso ao cinema
brasileiro. Como comentar esse fenômeno? Poderíamos pensar, com
otimismo, que as pessoas andam mais conscientes dos problemas do país,
mais interessadas na "realidade". Ou simplesmente dizer, no jargão de um
analista de mercado, o que Bianchi certamente abominaria: que, hoje, "a
realidade vende". Como a primeira abordagem não exclui a segunda, e
vice-versa, a recepção positiva de "Cronicamente Inviável" nos propõe um
dilema moral, claramente enunciado em outra fala do mesmo personagem:
"Este excesso de compreensão pode acabar virando cumplicidade". Da
cumplicidade ao cinismo a passagem é quase imediata. A "realidade"
interessa ao cínico, para quem vale a lógica do "quanto pior, melhor". O
cínico não é aquele que quer se iludir; é justamente alguém que percebe
com clareza a dura realidade e, cúmplice do que nos parece condenável,
aprende a jogar com ela em benefício próprio. Um dos recursos
utilizados repetidamente por Bianchi para produzir mal-estar no espectador
é o confronto de personagens de classe média, que se julgam politicamente
corretos, com os miseráveis com quem eles se dizem solidários; o resultado
do encontro é sempre desastroso e evidencia a nulidade de nossas boas
intenções diante da desigualdade monstruosa que já se produziu no país. O
engenho desse recurso consiste em manter, diante de algum fato abominável,
enunciados que seriam "razoáveis" em outro contexto. Os personagens,
evidentemente, não levam a sério o que dizem. Por duas vezes, por exemplo,
meninos de rua são atropelados por madames apressadas, diante de um
(mesmo) restaurante elegante. Os fregueses saem à porta e assistem à cena,
inertes, repugnados. Saindo do carro, a motorista contempla horrorizada o
corpo da criança agonizante e se dirige, evidentemente, a seus pares: eu
não tive culpa, eu estava dentro da lei, tenho um compromisso logo mais
etc. E conclui: "Eu não vou me atrasar por um excesso de escrúpulos
legalistas". Manobra o carro junto ao corpo do menino e vai embora. Não há
limites para a nossa tolerância moral; não há fato "real" o suficiente que
uma inversão no sentido do discurso não seja capaz de ressignificar, para
livrar a cara dos responsáveis. Se o senso (crítico?) comum estabelece que
"ninguém" se importa com a lei, não existe diferença entre o escrupuloso e
o otário, entre o realista e o canalha. O único crime imperdoável é
admitir a culpa. Em vez de "somos culpados", "Cronicamente Inviável"
parece estar demonstrando a seu público: "Tornamo-nos cínicos". Mas até
que ponto o filme, com seu realismo atordoante, não é mais uma
manifestação dessa "má consciência ilustrada" que constitui o cinismo, no
dizer do filósofo Peter Sloterdijk? Não é porque ninguém se salva
(moralmente) entre os personagens dessas crônicas de um país inviável que
o filme corre o risco de convocar o espectador ao cinismo. É porque ele
não possibilita nenhuma brecha para imaginar -ou mesmo desejar- que as
coisas possam ser diferentes.
Má consciência ilustrada O
espectador sente-se inteligente e crítico ao acompanhar, e compreender, as
construções inteligentes e críticas do argumento de Sérgio Bianchi. Mas,
se fosse convidado a escolher seu lugar no enunciado de Stanislaw Ponte
Preta, "ou restaura-se a moralidade ou locupletamo-nos todos", só poderia
se colocar entre os que se locupletam. Repetidamente, no filme,
personagens sofisticados e bem informados reúnem-se para comer bem e falar
mal do país, num ambiente em que qualquer indignação, qualquer apelo à
moralidade, soa absurdamente ingênuo. A má consciência ilustrada
nacional produziu, há décadas, um fenômeno estranho: nenhum brasileiro se
identifica com as mazelas do Brasil. Não se trata de falta de
"nacionalismo", que bem deveria ser dispensado, aqui ou em qualquer nação,
mas de falta de implicação. "No Brasil, todo mundo é trambiqueiro!",
exclama outro personagem do filme, justificando seus próprios trambiques
como parte do azar de ter nascido aqui. Como na letra da canção de Chico
Buarque, foi um Deus gozador que, tendo o mundo inteiro para nos destinar,
quis nos jogar aqui, "na barriga da miséria"... Quem pode, goza dos
privilégios de ser brasileiro -o que inclui os benefícios privados que
cada um pode tirar da tão falada "tolerância ética" nacional. O acréscimo
ao gozo está em que ninguém se sinta particularmente responsável pelas
consequências. Neste sentido, é didática a comparação de "Cronicamente
Inviável" com a peça "Bonitinha mas Ordinária", de Nelson Rodrigues, em
cartaz no teatro Eugênio Kusnet. Para o que me interessa nesta discussão,
a montagem de Marco Antônio Braz tem o mérito de enfatizar o dilema moral
do personagem Edgar e deixar em segundo plano o "escândalo sexual", muito
mais evidente, por exemplo, no filme de Braz Chediak, com Lucélia Santos,
de 1980. A montagem de Marco Antônio Braz, radicalmente rodriguiana, é
perfeitamente atual. Na peça, os efeitos tanto cômicos quanto dramáticos
se produzem a partir da crise em que a frase de Otto Lara Resende "o
mineiro só é solidário no câncer" precipita o incauto Edgar. A partir do
momento em que é tocado pela "frase do Otto", Edgar é lançado num
permanente conflito moral; depois da "frase do Otto", tudo é permitido;
nenhuma renúncia faz sentido, nenhum ideal se mantém, depois da "frase do
Otto". A frase força Edgar a se transformar num canalha. Pior: numa
demonstração genial de Nelson Rodrigues de que o efeito de um discurso
crítico fechado sobre si mesmo pode ser a sacralização do que ele pretende
demolir, o diabo da "frase do Otto" desautoriza qualquer aposta em outra
direção que não seja a da canalhice. Edgar, que pretendia escandalizar a
burguesia com a frase fatídica, assiste horrorizado à sua apropriação como
signo de distinção de classe; no clube, os milionários cumprimentam-se
alegremente, cúmplices em sua baixeza: "Como é que vai, mineiro?...". A
peça é de 1962. Nela, a repugnância de Edgar funciona como ancoramento de
um outro ponto de vista, fora do realismo cínico dos outros personagens.
Hoje a "frase do Otto", perfeitamente assimilada, soa quase pueril. Nada
desestabiliza o brasileiro do ano 2000 em sua triste resignação
acanalhada, a não ser, talvez, a insistência de alguns poucos (otários?
perdedores?) em se manter afastados da bandalheira geral. "Cronicamente
Inviável" termina com a fala de uma moradora de rua embalando o filho para
dormir. Ela diz que o menino deve ser honesto e não precisa se envergonhar
de sua pobreza. Diz que se orgulha do filho e do grande futuro que ele há
de construir. É o trecho mais chocante do filme, porque o diretor faz
dessa personagem, que nada tem a perder, a única que parece levar a sério
o que diz.
Maria Rita Kehl é psicanalista e ensaísta, autora de, entre
outros, "Deslocamentos do Feminino" (Imago).
Texto
Anterior: Ponto
de fuga - Jorge Coli: Pietro Maria Bardi Próximo Texto: José Simão: Fui à
Fnac e não comprei nenhum Eduardo Bueno! Índice
|