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OPINIÃO
ECONÔMICA
Cronicamente inviável
JOÃO SAYAD
A corrupção ocupa as primeiras páginas dos
jornais. Está em todos os lugares do governo, Legislativo e
Judiciário. Apesar do que dizem os "reformadores de Estado", está
também, como sempre esteve, no setor privado, isto é, nas relações do
setor privado com o setor privado. A impunidade tem se reduzido, graças
à democratização, à liberdade de imprensa, à independência entre os
poderes, à autonomia e aos abusos do Ministério Público. Ainda são
válidas, neste ano 2000, as críticas que se faziam à UDN, meio século
atrás. A corrupção, assim como a inflação, não é o principal problema do
país. É apenas sintoma, restrito às elites de todas as classes, e não
causa de nossos problemas. O que é ser santo -isto é, puro e perfeito-
no Brasil? Salvar a empresa que você dirige, demitindo mil funcionários
para preservar os empregos de outros mil? A concorrência ou a providência
olhará pelos outros? Aplicar o capital a juros para salvar o
capital? Contratar sem registro porque é impossível pagar período
integral e registrar? Sonegar impostos para fazer face à concorrência
de outros sonegadores ou pagar impostos e fechar a empresa? Cortar
todas as árvores de Rondônia e do Acre, antes que os malaios acabem com
elas para ganhar dinheiro -que você depois dá ao Greenpeace para
reconstruir a floresta? As perguntas não são críticas nem ironias a
nenhum governo; não acho que possam ser respondidas com reforma
tributária, Ibama nem outra coisa. Pergunto apenas para definir o que é a
corrupção. O capelão militar norte-americano que dava extrema-unção aos
soldados que morreram ao jogar bombas de napalm na pequena vila de
guerrilheiros vietnamitas é santo? O nazista simpático que se despede dos
judeus nos trens de gado com lágrimas nos olhos é corrupto? Um lenhador
campeão de corte de pau-brasil é santo? A corrupção é sistêmica. O
filme "Cronicamente Inviável" trata desse tema. Não fala em corrupção, mas
descreve todos nós brasileiros, de todas as cores, profissões e classes
sociais, como individualistas que, na hora do perigo, do acidente, do
assalto ou da redenção, se mostram como são: roubam, salvam o seu e fogem.
Fazem quase tudo legalmente. Talvez a resposta esteja no título do
filme. Não concordo que o país seja cronicamente inviável. Mas, hoje, o
vemos como inviável de forma aguda. Corrupção é apenas a hipocrisia que
esconde o ceticismo e a vontade fraca. Proclamamos a crença no futuro
do país. Basta acabar com a inflação, privatizar, reduzir o "custo
Brasil", combater a corrupção e pronto, o país começará a crescer, a
desigualdade diminuirá e teremos orgulho de nós mesmos daqui a 300
anos. Seremos heróis respeitados, como os portugueses degredados para o
Brasil nos primeiros anos após o Descobrimento e que hoje poderiam ser
nomes de rua porque sobreviveram entre canibais, descobriram a foz de um
rio qualquer e aumentaram as fronteiras do país. Também escravizaram
índios, mataram espanhóis e franceses, roubaram e foram cruéis. Fizeram
tudo isso para salvar a si mesmos. São corruptos ou, do ponto de vista
histórico, corrupção não tem importância? Os corruptos brasileiros são
corruptos porque, mesmo não sendo cientistas sociais, economistas,
filósofos ou profetas, não acreditam que o país vai bem. Fazem discurso,
definem a nova agenda do Brasil moderno -abertura com exclusão- e tratam
de salvar a própria pele, pegam o dinheiro e fogem para algum lugar. A
corrupção pode estar aumentando. Não pode ser pela impunidade. Poderia ser
a falta de esperança, fé, projeto ou idéia que nos empolgue. A
corrupção é maior à direita. No fundo, o corrupto de direita concorda com
a crítica da esquerda sobre o Brasil contemporâneo. Apenas não tem ânimo
para propor mudança, é hipócrita para revelar a própria desesperança.
Prefere se safar sozinho. O avião começa a sacudir, a janela brilha em
vermelho com a turbina pegando fogo. A aeromoça anuncia pelo rádio:
"Estamos enfrentando pequena turbulência, por favor apertem os cintos".
Estapeia com energia a passageira da primeira fila que grita, histérica. A
ordem tem de ser mantida. Beija apaixonadamente o piloto, coloca o
pára-quedas e salta, com lágrimas nos olhos, cheia de compaixão pelos
passageiros que vão se estatelar lá embaixo nas copas das árvores
queimadas da floresta atlântica.
João Sayad, 53, economista, professor da Faculdade de
Economia e Administração da USP e ex-ministro do Planejamento (governo
José Sarney); é autor de "Que País é Este?" (editora Revan); escreve às
segundas-feiras nesta coluna. E-mail - jsayad@ibm.net
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