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FERNANDO DE BARROS E
SILVA
Um intelectual brasileiro
Um dos achados de "Cronicamente Inviável", o filme de Sérgio Bianchi, é
o seu intelectual-protagonista, o antropólogo Alfredo, representado por
Umberto Magnani. Ninguém, ao que parece, deu muita bola para o fato de que
ele seja colega de ofício de Ruth Cardoso. A força do filme, no entanto,
deve muito à abordagem antropológica que faz do país, como se nos dissesse
que somos uma "sociedade de índios", que sobrevive e se reproduz idêntica
a si mesma há 500 anos, não apesar, mas justamente por ser cronicamente
inviável. Na distinção clássica feita por Lévi-Strauss entre
"sociedades quentes", que têm história cumulativa, mudam e evoluem no
tempo, e "sociedades frias", como que refratárias à história, sempre
fechadas sobre si mesmas, o Brasil visto por Bianchi ficaria entre as
últimas. Sua história é circular -ou gaguejante- e o progresso nela se faz
à custa do atraso, que reproduz indefinidamente, deixando intacta a
desigualdade social -o tema do filme. Mas Alfredo, mais do que
antropólogo, é o melhor retrato do (que sobrou do) intelectual brasileiro.
Não chega a ser niilista. Falta-lhe energia, ainda que destrutiva, para
tanto. É antes um observador solitário e abatido em sua rabugice crônica,
desengajado e desiludido, mais indiferente do que cínico, pois o cinismo
ainda é uma forma de revolta impotente. Nada lhe é decisivo além de sua
sobrevivência. Logo nas primeiras cenas do filme o vemos, pálido e
suado, numa praia qualquer da Bahia, sentado numa cadeira enquanto
acompanha uma reunião de farofeiros. Com seu gravadorzinho portátil à mão,
vai registrando impressões aleatórias a partir do que vê. A indolência
daqueles seres à milanesa o faz lembrar de Montesquieu e das "teorias" do
século 18, que atribuíam ao calor dos trópicos -que "engrossa o sangue e
impede o raciocínio"- o nosso déficit civilizacional. Na sequência, sem
qualquer motivo, um descendente de índios é espancado na praia por dois
policiais, à vista de todos. Alfredo olha a cena e agrega novos argumentos
à imagem depreciada que vai compondo do país. Seu método consiste em
desqualificar os objetos que fazem da antropologia uma ciência tão
simpática -o Carnaval, o samba, a miscigenação etc. Mas, já no final do
filme, ficamos sabendo que o antropólogo, autor do livro "Brasil Ilegal",
completa seu "orçamento" transportando órgãos ilegais (este o motivo real
de suas viagens pelo país). Como ele explica, "escrever livros não dá
dinheiro pra ninguém". Assim como Glauber, em "Terra em Transe", fez de
Paulo Martins (Jardel Filho) o protótipo do intelectual dos anos 60,
Alfredo é o representante da "intelligentsia" na era FHC. Exasperado e
contraditório, Martins vivia o dilema entre a arte e a política como um
drama existencial, decisivo. Tanto seu engajamento como sua derrocada se
revestem de tons épicos, o que hoje nos soa um tanto ridículo. Alfredo,
pelo contrário, é prosaico até o osso e, mesmo sendo sistematicamente do
contra, está mais preocupado em tocar o serviço. No fim, revela-se apenas
mais um trambiqueiro entre tantos. A imagem serve tanto aos
intelectuais da esquerda prostrada, os nossos "fracassomaníacos", quanto a
certa elite tucana, que, por enquanto, não trafica órgãos, mas só
influência.
Fernando de Barros e Silva é editor do "Painel" da Folha.
Hoje, excepcionalmente, não é publicado o artigo de Otavio Frias Filho,
que escreve às quintas-feiras nesta coluna.
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