|
Bianchi traça
painel da desigualdade |
|
|
O filme `Cronicamente
Inviável', metáfora poderosa da vida no Brasil, hoje, é a melhor e
mais pungente obra de um cineasta inconformista
|
|
O mais radical dos cineastas brasileiros tem filme novo em exibição.
Sérgio Bianchi, realizador, entre outros, de Maldita Coincidência,
Mato Eles? e Romance, obras poderosas e contundentes, volta hoje às telas
com Cronicamente Inviável. Passaram-se seis anos desde seu último longa, A
Causa Secreta, rodado em 1994. Durante esse tempo, o quadro que o cineasta
paranaense traça do Brasil não foi amenizado, nem se tornou mais otimista.
Cronicamente Inviável remete, do título brilhante e sombrio ao roteiro
cruel, ao Brasil predatório e corrompido da era Fernando Henrique Cardoso.
Em foco, ocupando o centro das atenções, está o abismo que separa as
elites das hordas de miseráveis.
Ao redor de um restaurante em São Paulo giram as personagens de
Bianchi.
Como nas histórias medievais, que reuniam todas as classes sociais em
suas metafóricas "naus de insensatos", Cronicamente Inviável traça um
painel em que há representantes dos donos do poder, da burguesia, dos
trabalhadores, dos miseráveis. Os temas que o filme abarca vão da
destruição do ambiente à violência urbana, ao tráfico de crianças, à venda
de órgãos infantis.
País de pesadelo É um país de pesadelo, esse que surge na tela
em Cronicamente Inviável. Amanda (Dira Paes), descendente de índios e
negros, trabalha como gerente do restaurante do sofisticado homossexual
Luís (Cecil Thiré) e dirige a rede de tráfico de crianças e de órgãos. O
simpático filósofo Alfredo (Umberto Magnani), que percorre o Brasil na
tentativa de entender seus sistemas viciados de dominação, é portador dos
órgãos vendidos por Amanda.
Completam a lista de personagens Maria Alice (Beth Goffman), uma
angustiada burguesa que se sente culpada pela miséria circundante, seu
marido, Carlos (Daniel Dantas), que pretende tirar partido da bagunça
brasileira, e Adam (Dan Filip Stulbach), jovem amoral e revoltado que
fugiu do interior do Paraná para tentar a vida em São Paulo, onde vai
trabalhar no restaurante de Luís.
Embora seja concentrado ali o centro da ação, Cronicamente Inviável
inclui cenários que vão dos baixos de viadutos em que dormem os sem-teto
às praias da Bahia, paradisíacas, embora poluídas, e às vastas áreas
desmatadas da região amazônica.
Com um elenco extremamente eficiente (destaques para Umberto Magnani,
Beth Goffman e Dan Stulbach) e um roteiro poderoso, bem amarrado,
Cronicamente Inviável mostra ao espectador um quadro insuportável. O único
momento de afeto verdadeiro que se vê na tela é aquele em que uma moradora
de rua põe seu filho para dormir com uma oração amorosamente inventada.
Dispensando simpatias O diretor, que deu à obra ritmo veloz e
estrutura truncada, brincando com o "efeito de distanciamento" de Bertolt
Brecht, não alicia o público nem quer sua simpatia. O filme, duro,
raivoso, mostra não a face oficial do Brasil, mas o país das contradições
absurdas, dos festejos desastrosos dos 500 anos.
Exemplo perfeito dessa situação crítica é Maria Luísa, vivida por Beth
Goffman. A dona de casa, consciente da crise social, é na verdade uma
mulher egoísta que se vinga de um assalto promovendo a discórdia entre
crianças de rua.
Outro momento exemplar do filme é a passagem em que o jovem Adam é
levado por um cozinheiro do restaurante (Leonardo Vieira, em segura
atuação) a uma sauna gay, onde o jovem ouve conselhos sobre como ganhar
dinheiro com a prática do sexo pago.
E a síntese do filme está em um par de cenas cruéis, nas quais dois
menores carentes são atropelados e abandonados na rua por burguesas
anônimas, vividas pelas ótimas Cláudia Mello e Maria Alice Vergueiro.
Obrigatório, Cronicamente Inviável é a melhor obra de Bianchi, cineasta
explosivo, coerente, inconformado.
Alberto Guzik |