A causa secreta, 1994. Longa-metragem, 35mm, ficção, 93 min.

"'Causa secreta' é libelo contra indiferença." Luiz Zanin Oricchio. O Estado de São Paulo, 1994.

"Uma morbidez coletiva que assola o Brasil". Carlos Alberto de Mattos. Jornal do Brasil, 19/08/1994.

A causa secreta1994. Longa-metragem, 35mm, ficção, 93 min. Roteiro: Sérgio Bianchi, Kate Lyra e Isa Kopelman; Montagem: Valéria Mauro; Fotografia: Dudu Poiano; Som: Walter Rogério; Elenco: Ester Góes, Renato Borghi, Cláudia Mello e Rodrigo Santiago.

Prêmios: Melhor Diretor Longa-Metragem e Melhor Atriz (Cláudia Mello), 27º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, 1994; Prêmio de Melhor Roteiro, Melhor Ator Coadjuvante (Rodrigo Santiago), Melhor Atriz Coadjuvante (Cláudia Mello e Ester Góes), Associação Paulista de Críticos de Arte, 1994; Melhor Direção, II Mostra Nacional de Cinema e Vídeo de Cuiabá, 1994.

"'Causa secreta' é libelo contra indiferença." Luiz Zanin Oricchio. O Estado de São Paulo, 1994.

Em Gramado, o filme "A causa secreta" foi envolvido na chamada "polêmica do rato". Numa das cenas, um dos personagens tortura longamente uma ratazana sobre a chama de uma espiriteira. Todo mundo ficou chocado. O diretor Sérgio Bianchi se defendeu dizendo que seu filme tinha outros motivos mais relevantes para causar engulhos no público: mostra em alguns momentos crianças carentes passando fome. Depois abre sua lente em um hospital público e revela como são tratados os pacientes. A defesa de Bianchi é boa, em princípio. O filme é construído em torno dessa acomodação ao sofrimento (alheio), uma estratégia de sobrevivência social como outra qualquer. Choca mais ver um animal torturado que uma criança passando fome. A miséria nacional já produziu seus anticorpos sociais. Um deles é a indiferença. É contra isso que Bianchi se indigna. Seu filme tem a força de um libelo. Essa sua virtude: não se aliena em preciosismos esteticistas num momento grave da nação. Procura o confronto, a polêmica, não o apaziguamento. Essa atitude visceral já uma virtude em si. Insuficiente, no entanto, para fazer de "A causa secreta" um grande filme. Bianchi adaptou livremente o conto homônimo de Machado de Assis. A história é a análise aguda do comportamento de um sádico. Só que Machado, que de bobo não tinha nada, descobre traços de sadismos ocultos por baixo da filantropia mais abnegada. Uma constatação desagradável também feita por outro senhor do século 19, o vienense Sigmund Freud. Bianchi faz com que o conto vire uma peça de teatro. Os atores, dirigidos por um tiranete (Renato Borghi) se entredevoram, até que um deles acaba morrendo. O problema é trabalhar com personagens muito histéricos, como é o caso de Ester Góes. Ou esquemáticos até a caricatura, como o esquerdista vivido por Luiz Ramalho. A vocação over enfraquece o impacto do filme. Mas não totalmente. Não se fica indiferente à "A causa secreta". O que já é motivo de sobra para vê-lo, num tempo em que 99% da produção consiste em mero entretenimento descartável e digestível.

 

"Uma morbidez coletiva que assola o Brasil". Carlos Alberto de Mattos. Jornal do Brasil, 19/08/1994.

Sérgio Bianchi conseguiu atravessar a crise sem abdicar de sua personalidade autoral. A causa secreta é, por sinal, um retrato dessa personalidade: ousado, virulento, contraditório. Apoiando-se no conto de Machado de Assis - pequena obra-prima sobre a morbidez e o sadismo -, Bianchi projeta uma história intimista para o nível de uma reflexão sobre o choque de classes no Brasil. Um grupo teatral prepara uma adaptação do conto de Machado e vive situações típicas de um país conflagrado: a insensibilidade das elites à frente da miséria urbana, a inutilidade do debate de idéias diante do sofrimento físico, as humilhações sexuais embutidas no jogo do poder e até a falta de uma política de saúde para o país desfilam pela tela, em pílulas nada doces. São episódios exemplares, assumidamente teatrais, verbalizados com raiva e sarcasmo, que sintetizam um país manietado pela burocracia dos gabinetes e por relações sociais baseadas no mais completo cinismo. A denúncia desta morbidez coletiva se articula por inteiro no discurso direto do cineasta nos letreiros finais, que é onde se manifesta também a contradição geradora de todo o projeto: o filme foi patrocinado por um banco importante e por grandes organismos estatais, e critica, entre muitas outras coisas, estes mesmos patrocinadores. Trata-se, enfim, de uma obra imperfeita, com elenco irregular e nenhuma intenção de entretenimento. Mas onde são expostas, de forma hiper-realista, como numa mesa de vivissecção, as entranhas de um estranho animal chamado Brasil.