Mato eles? 1982. Média-metragem, 16mm, ficção/documentário, 34 min.

"O documentário sobre os índios interditado pela Censura". Edmar Pereira, Jornal da Tarde (SP), 20/04/1983

"'Mato eles?' e 'Chapeleiros'- A arte de fazer perguntas". José Carlos Avellar, Jornal do Brasil, 06/12/1983.

Mato eles? 1982. Média-metragem, 16mm, ficção/documentário, 34 min. Fotografia: Pedro Farkas; Som: Marian Van de Vem; Montagem: Eduardo Albuquerque e Sérgio Bianchi; Elenco: Lota Moncada, Carlos Kraide.

Prêmios: Melhor Direção, Festival de Gramado, 1983; Melhor Filme, Melhor Roteiro, Melhor filme do Júri Oficial e do Júri Popular, Festival de Brasília, 1983; Prêmio Martin Fierro, Melhor Filme, 1983; Prêmio São Saruê, Federação dos Cineclubes do Rio de Janeiro, 1984; Primeiro Prêmio, Festival de Cinema do México, 1985.

"O documentário sobre os índios interditado pela Censura". Edmar Pereira, Jornal da Tarde (SP), 20/04/1983

Uma denúncia contundente, feita com humor, criatividade, autocrítica e originalidade: essas qualidades garantiram ao média-metragem "Mato eles?", de Sérgio Bianchi, o prêmio de melhor direção do último Festival de Gramado. Mas este documentário de 35 minutos de duração, filmado na reserva indígena de Mangueirinha, no sudoeste do Paraná, e exibido em Gramado com um certificado especial, foi interditado ontem pela censura. Segundo informações extra-oficiais, "por ser contrário aos interesses nacionais", decisão quer pode adiar sua exibição no pequeno auditório do Masp, onde, a partir de sexta- feira, "Mato eles?" poderia ser visto juntamente com "Índios: direitos históricos", de Hermano Penna. Na véspera da interdição, o diretor Bianchi, nascido no Paraná e autor do polêmico longa-metragem "Maldita coincidência" assistira em Florianópolis à primeira exibição pública de "Mato eles?" O filme foi mostrado a uma platéia de universitários, na reitoria da Universidade de Santa Catarina, numa sessão seguida de debate. Entre perguntas e apreciações amistosas, Bianchi detectou "dois interlocutores francamente hostis, interessados em saber como e com autorização de quem eu filmara aqueles lugares e entrevistara aquelas pessoas." "Mato eles?" apresenta depoimentos de religiosos, porta-vozes da Funai e de muito indígenas, alternados com a participação de um ator e de uma atriz, em papéis de um professor e de uma grã-fina, que, segundo o diretor, dizem textos de declarações e opiniões de pessoas "que não concordaram em repeti-los diante de minha câmara." - Na verdade, mesmo quando se trata de realidade, de declarações na primeira pessoa, tudo parece uma grande encenação. Porque a verdade mesmo ninguém diz, com exceção dos índios. Eu tive a preocupação de não fazer apenas uma denúncia em si, não sou sociólogo nem antropólogo, minha preocupação foi que se tratasse mesmo de cinema. Procurei colocar todos os grupos que negociam ou faturam com o problema dos índios, sem deixar de mostrar que se trata de um bom negócio. Mostro que o extermínio continua, só que adquiriu formas mais sofisticadas. Bianchi mostra que nessa reserva de Mangueirinha, onde vivem índios Kaingang, Guaranis e Xetás (um único representante, que seria também o último sobrevivente de sua raça) a Funai instalou uma serraria que já teria desmatado metade da reserva, o que compromete a viabilidade da caça e outras possíveis soluções de vida para os índios, quando os recursos naturais forem esgotados. - Filmei tudo em uma semana apenas, com fotografia de Pedro Farkas e roteiro a partir de uma tese do antropólogo Jacó Piccoli, meu sócio e atual diretor da Fundação Cultural do Acre. Procurei não montar uma opinião a anteriori, não tenho compromissos nem ligações com nenhum partido ou grupo político. O roteiro foi baseado nas possibilidades da montagem e os rumos do filme foram ditados pelos depoimentos que colhi. Quando cheguei à reserva, a última floresta de araucária do sul do Brasil, vi que metade dela havia sido comprada por uma empresa de capital privado, uma madeireira. Esta metade permanece intocada, porque a venda é contestada pela Funai, que na outra metade instalou serrarias e faz com que os índios trabalhem como assalariados. Aí, a gente chega a uma conclusão óbvia: a serraria é do capital privado ou do Estado e, em qualquer dos casos, a floresta será destruída. O índio, mais cedo ou mais tarde, vai virar mendigo na beira da estrada. Além dos índios, Bianchi diz-se preocupado também com a ecologia. "As pessoas aqui no Brasil vão acabar discutindo linhas políticas passando máscaras de oxigênio umas para as outras. As pessoas da elite, bem-entendido, porque os pobres morrerão com falta de "ar". Sem deixar de acrescentar ácida ironia à sua revolta, exatamente como faz em "Mato eles?", o cineasta provoca. - Eu pergunto às autoridades brasileiras: 1) Quem assina embaixo desse genocídio; ele é justificado como extração de produtos; pra onde vai o dinheiro arrecadado? 2) O não reconhecimento dos índios como uma cultura diferenciada e com alguns elementos de profunda inteligência não supõe uma profunda burrice de vossas senhorias? Basta que se observe o processo de folclorização feito sobre o cacique Juruna - transformado em ser exótico e objeto de ridículo pelos meios de comunicação. Aliás, considero Jô Soares um agente do extermínio da cultura indígena e do próprio índio. 3) Se a Funai é uma empresa extratora dos recursos naturais dos índios, por que ela não paga impostos como as outras empresas capitalistas? Isto não é concorrência desleal? De Brasília, informou-se no final da tarde de ontem que a decisão oficial sobre a liberação ou proibição de "Mato eles?" sairá "dentro de alguns dias". Edmar Pereira

"'Mato eles?' e 'Chapeleiros'- A arte de fazer perguntas". José Carlos Avellar, Jornal do Brasil, 06/12/1983.

No começo de "Mato eles?", Sérgio Bianchi entrevista um padre assim como quem traz na cabeça a lembrança de uma cena do "Aguirre, a cólera dos deuses", de Werner Herzog. A cena é aquela em que o padre Gaspar de Carbajal entrega uma Bíblia a um índio explicando que ali está a palavra de Deus. O índio encosta o livro no ouvido e com ar surpreso diz que não está escutando palavra alguma. O padre se irrita, grita que isto é uma ofensa a Deus, e Aguirre mata o índio. Sérgio, diante do padre que entrevista na abertura de seu documentário sobre os índios da reserva de Mangueirinha, faz assim como quem pergunta se é verdade que cenas como esta aconteceram de fato. Se os primeiros padres que chegaram na América davam Bíblias para os índios lerem. Se a Igreja matava os índios que não entendiam a palavra de Deus. O padre responde alguma coisa, mas a resposta, exageremos um pouco, não tem nenhuma importância. Vale só a pergunta como coisa para ficar no ar, sem resposta mesmo. É bastante provável que o espectador passe pela resposta sem se dar conta do que o entrevistado está dizendo, com a imaginação trabalhando ainda a pergunta, que, longa, elaborada, apresentada tanto para o padre quanto para a pessoa que está na platéia, é algo mais do que a simples preparação para uma questão que se resolve por inteiro na resposta. "Mato eles?" (a interrogação no título é bastante significativa) se propõe na tela como pergunta mesmo, como questionamento nervoso, irônico, tumultuado até, com as perguntas se atropelando e se superpondo. A Funai é um órgão de proteção indígena ou uma indústria de extração de madeira? O último índio da tribo Xetá deve ser tombado pelo patrimônio histórico? O extermínio deve ser imediato ou lento e gradual? É bom negócio comprar a terra dos índios e retirar a madeira? É bom negócio denunciar a exploração dos índios? É melhor negócio destruir a floresta e esperar que os índios morram com mendigos na beira da estrada, ou denunciar tudo isto numa tese ou num filme que podem até dar bom dinheiro numa universidade ou televisão européia? Sérgio Bianchi, ele mesmo, dentro do plano, visível na imagem, ou por trás da câmera, presente na imagem só com a sua voz, faz as perguntas, discute com os entrevistados. Mas de quando em quando as perguntas aparecem também escritas na tela, num intervalo entre uma e outra entrevista, em cartões arrumados como se fossem as questões de uma qualquer prova de múltipla escolha de um vestibular. O lado didático deste documentário, esta componente didática que existe em quase tudo quanto é filme documentário, não se desenha aqui como se fosse uma aula, mas sim como se fosse uma prova para testar o conhecimento do espectador sobre o problema do índio - problema do índio ou problema do branco? Apresenta-se um problema: em Mangueirinha, sudoeste do Paraná, reserva em que vivem índios caingangues, guaranis e xetás (na realidade um único xetá, um último sobrevivente desta tribo), a Funai instalou e administra uma serraria que vai aos poucos destruindo a floresta. E então, em torno de uma questão principal - quando a floresta acabar, o que vai ser do índio? - "Mato eles?" dispara uma série de questões. Dispara para todos os lados, sem dar tempo de resposta, porque acredita talvez que a resposta não pode vir do que dizem os entrevistados. Não é bem assim que os filmes documentários costumam agir, não é bem esta a maneira de trabalhar de um repórter, pode perguntar-se o espectador habituado a ver nos informativos que recebe através de imagens e sons, no cinema ou na televisão, um jornalismo bem mais polido e explicativo. Sérgio Bianchi incorpora ao estilo de seu filme um dado que no cinema documentário no Brasil explodiu primeiro, ao que parece, com o "Di", de Glauber, e que prosseguiu com as entrevistas de televisão feitas pelo próprio Glauber. Que apareceu mesmo, mais forte do que em qualquer outro lugar, numa entrevista (melhor seria dizer: numa luta livre verbal) feita aí pela metade de 78, com um guardador de automóveis chamado Brizola, que ganhara este nome em homenagem ao político, hoje governador do Estado, que naquele momento o guardador não sabia muito bem quem era. Mas, digressões à parte, esta coisa que talvez tenha pintado primeiro no "Di" é uma certa desmontagem do sistema do filme documentário através de uma interferência doida, caótica, debochada até, do realizador dentro da cena: ele vê, filma, participa e fala de tudo; do tema do filme, do cinema, dele mesmo. O fato novo está aí. Para romper uma simplória reprodução das aparências do natural, o cinema documentário tem procurado compor uma encenação transparente: levar as pessoas a viver especialmente par a câmera a vida que vivem a toda instante; levar atores a reconstituir para a câmera cenas que não puderam ser filmadas no instante em que se deram; levar para um mesmo contexto e para um mesmo espaço contíguo ações ou depoimentos que se deram na realidade distantes um do outro. "Mato Eles?" toma todas estas figuras de narração comuns aos documentários: usa intérpretes (para viver a grã-fina e o professor e repetir, explicar Bianchi, declarações de pessoas que não quiseram ser filmadas); monta mais ou menos livremente suas imagens e sons; organiza a sua cena, leva o índio a viver seu cotidiano para a câmera (num jeito solto, bem de acordo com o cinema de ficção de agora) pelo menos naquele momento em que bate na tela parodiando o letreiro de uma grande produção para, ao som de "O Guarani", de Carlos Gomes, apresentar o último xetá. E, além disto tudo, além deste esforço para reconstruir na tela, em imagens e sons apenas, todas as múltiplas sensações recebidas do contato com Mangueirinha, Sérgio Bianchi discute, agride, desmonta, questiona o próprio método de trabalho. Entra na imagem. Tumultua a conversa. Pergunta para si mesmo (em voz alta, para o espectador ouvir) o que afinal está fazendo com este seu filme sobre os índios: "Mato eles"? Quer dizer, convém tomar cuidado com as palavras, tomá-las como imagens talvez, e não como uma coisa só, como signo bem definido. Porque quando se fala, como aí acima, em intervenções caóticas, loucas e tumultuadas, é preciso ter em conta que é bem assim e ao mesmo tempo não é nada assim. Que o filme na tela passa claro e fácil de seguir, que o tumulto é apenas uma figura de estilo, um jeito de ser claro, sereno, linear, preciso, metódico até. No final do documentário, quando quase todas as perguntas parecem já ter sido feitas, um índio olha para o realizador e pergunta (num tom debochado, provocador, naquele tom usado por Sérgio Bianchi todo o tempo) o que afinal ele estava fazendo ali com aquelas perguntas todas. Pra que o filme? Quanto ele estava ganhando com o filme? Qual seria o lucro dele para mostrar a pobreza do índio? Perguntas para serem deixadas sem respostas. Por isso mesmo a voz do diretor entra baixinho, docemente quase, como a voz do padre entrevistado no começo. Não para dar uma resposta, mas para reforçar as questões, para ampliar as perguntas, para sugerir, no questionamento e não numa resposta, que o problema do índio é o problema do branco. Que falar do problema do índio não é possível sem se colocar o problema do homem branco, sua maneira de ver, viver e pensar, em questão. Para sugerir que olhar para o índio é principalmente olhar para o branco, e se perguntar o que fazer. "Mato Eles?" A questão aparece melhor apresentada assim como está, neste programa duplo que a Cinemateca do MAM apresenta até o próximo Domingo nas sessões das 20h30min. Com o filme de Sérgio Bianchi se exibe "Chapeleiros", de Adrian Cooper, documentário que parece inteiramente diferente se apanhado apenas pelas suas características formais mais evidentes: a tranqüilidade da câmera que observa paciente uma ação aparentemente normal e nada dramática, o dia-a-dia dos trabalhadores de uma fábrica; a tranqüilidade do realizador, que fica todo o tempo ausente da situação que filma. Cada questão a ser narrada sugere ao repórter a forma de narração a ser adotada, e na realidade esta aparente boa ordem de exposição de "Chapeleiros" é uma construção tão indagadora e forte quanto a movimentação incessante de "Mato eles?" Deixar-se em disponibilidade para os sinais que surgem do cotidiano, dialogar com eles (perguntar-se: aproveito eles? mato eles?) é bem isto que faz o cinema documentário.