Romance, 1988. Longa-metragem, 35mm, ficção, 103 min.

"'Romance', a roleta-russa de Sérgio Bianchi". Amir Labaki, Folha da Tarde (SP), 28/04/1988

"Um retrato do Brasil. Com a rebeldia de Sérgio Bianchi". Edmar Pereira, Jornal da Tarde (SP), 28/04/1988.

Romance, 1988. Longa-metragem, 35mm, ficção, 103 min. Fotografia: Marcelo Coutinho; Montagem: Marília Alvim; Roteiro: Fernando Coni Campos, Mário Carneiro, Caio Fernando Abreu, Cristina Santeiro, Cláudia Maradei, Suzana Semedo. Trilha Sonora: Grupo Chance; Elenco: Rodrigo Santiago, Imara Reis, Isa Kopelman, Hugo Della Santa, Cristina Mutarelli, Sérgio Mamberti, Beatriz Segall, Maria Alice Vergueiro, Elke Maravilha, Ruth Escobar, Emílio di Biasi, Cláudio Mamberti, José Rubens Cachá.

Prêmios: Eleito um dos 10 melhores filmes de 1988 pelo O Estado de São Paulo e pela Associação de Críticos do Rio de Janeiro, Melhor Longa-Metragem "ex-aequo" no 5º Festival Internazionale di Film com Tematiche Omosessuali, Turim, 1990; Melhor Direção, Melhor Atriz (Imara Reis) e Melhor Atriz Coadjuvante (Isa Kopelman), 21º Festival de Cinema de Brasília, 1988; Troféu Gralha Azul, Melhor Filme do Ano, Federação Paranaense de Cineclubes, 1988.

"'Romance', a roleta-russa de Sérgio Bianchi". Amir Labaki, Folha da Tarde (SP), 28/04/1988

"Romance" é desses filmes que supera as imperfeições formais, surpreendendo o espectador pela vigorosa impressão que deixa na mente e nos olhos. O segundo longa-metragem de Sérgio Bianchi não é tão homogêneo, bem-acabado e enxuto quanto o média "Mato eles"(1982), seu melhor trabalho e um marco no cine-documentário brasileiro contemporâneo. Mas o resultado final é tão perturbador que minimiza essa deficiência. Combinando uma narrativa predominantemente tradicional com pequenos trechos não-convencionais - como um filme publicitário e um curto documentário sobre as dramáticas condições de vida de habitantes da orla da estrada que liga Paraná e São Paulo -, "Romance" acompanha a partilha do testamento existencial de um intelectual glauberiano chamado Antônio César (Rodrigo Santiago, excelente), que morre misteriosamente num acidente, por três personagens: Maria Regina (Imara Reis, idem) é uma pesquisadora apaixonada pelos trabalhos dele que sai em busca de seu último livro - uma denúncia sobre um caso de corrupção envolvendo agrotóxicos e políticos bem posicionados - que desapareceu antes de vir a público. Fernanda (Isa Kopelman, fraquíssima) é a última amante de Antônio César, que tenta aplicar na sua vida sem ele a luminosa anarquia político-social que seu amado-guru pregava e vivenciava. Já o homossexual André (Hugo Della Santa, bom desempenho em seu último - e amargamente profético - papel), com quem Antônio César morava antes de morrer, introjeta a paranóia da Aids, acreditando-se contaminado e condenando-se a uma pungente solidão. Embaralhando as trajetórias desses quatro protagonistas - um Antônio César, morto desde o início do filme, três, vivos -, Bianchi toca em três preocupações básicas do momento: a degeneração moral, da qual a corrupção política é o sintoma mais explícito na área pública, a degradação da qualidade de vida (isto é, a sistemática violação da ecologia), e o verdadeiro "marcartismo" sexual que se fortaleceu na esteira da Aids. A principal qualidade de "Romance" é tratar desses temas sem assumir um tom moralista e professoral e também sem ter se limitado aos clichês que empobrecem e, logo, matam toda discussão. Bianchi apresenta como que um "polaroid" das tensões fartamente disseminadas nestas áreas, captando-as na concretude que apenas a experiência individual garante. "Romance" não tem um final feliz. Maria Regina, Fernanda, André, os três fracassam. A pesquisadora se deixa corromper; a ex-amante não suporta mais a existência e se mata; André também recorre a uma espécie de suicídio, trocando a solidão pelo efêmero prazer com homossexuais da rua - uma autêntica roleta-russa. Um final sombrio. Difícil maior sintonia com o Brasil de hoje.

 

"Um retrato do Brasil. Com a rebeldia de Sérgio Bianchi". Edmar Pereira, Jornal da Tarde (SP), 28/04/1988.

Sua reputação de rebelde ou de maldito é tão divulgada quanto a de talentoso. E foi construída desde os tempos de estudante de cinema, na ECA, quando dirigiu os curtas "A Segunda Besta" e "Omnibus", baseados em contos de Júlio Cortázar. Nessa época de engajamento político quase que obrigatório, seus colegas e professores acharam que esses filmes revelavam uma excessiva preocupação formal e uma pouca atenção com o cotidiano oprimido pela ditadura militar. A partir daí, o curitibano (sic) Sérgio Bianchi decidiu que "podia juntar engajamento e rebeldia". Exibiu a receita já no seu primeiro longa, "Maldita coincidência", em 1979. Aperfeiçoou sua fórmula em dois outros curtas, "Matos eles?" e "Divina Previdência", premiados dentro e fora do Brasil. Com "Romance", seu segundo longa-metragem, que estréia hoje no Belas Artes (Sala Aleijadinho), Bianchi confirma novamente que rebeldia e talento estão incorporados a seu estilo de fazer cinema. "Romance", rodado em 86, montado ano passado e de produção extremamente acidentada - brigas com equipe, substituições, roubo de equipamento, o sofrimento das verbas em conta-gotas liberadas pela Embrafilme, co-produtora junto com o cineasta - pretende ser um retrato de atitudes, ações e sentimentos do Brasil contemporâneo. Fala de corrupção, cooptação pelo poder, ameaças, especulação imobiliária, desesperança, Aids - entre outras coisas. "São quatro histórias de pessoas e coisas observadas na realidade de hoje. Um filme tentando refletir sobre o agora, acho que o cinema brasileiro não tem feito muito por isto", diz o diretor. "Tentei sempre colocar uma visão de falência de posições, posso dizer que "Romance" é um filme sobre a absoluta falta de solidariedade social do povo brasileiro. Acabou ficando mais irado do que eu planejava. Era para ser cru assim mesmo, mas com um senso maior de humor." As ações de "Romance" giram em torno de Antônio César, um intelectual misteriosamente morto, visto em cena através de depoimentos, lembranças e gravações, cujo verbo barroco e indignado lembra o Glauber Rocha dos programas e entrevistas na tevê. "Mas não me baseei em Glauber, não peguei nenhum modelo. É uma personagem de intelectual da alta classe social, com uma ética que acredita na possibilidade de transformações sociais e humanas no Brasil. Neste país, como se sabe, esquerdismo é um esporte da classe rica". O ator Rodrigo Santiago (no momento fazendo o vilão da novela "Fera Radical", da Rede Globo), que interpreta Antônio César, diz: "Vendo o filme pronto achei semelhanças entre minha personagem e Glauber. Mas ao filmar eu pensei mais foi em Hélio Oiticica. Como o filme teve várias interrupções e foi rodado durante quase dois anos, eu apareço de várias caras diferentes dos meus papéis no palco. Tem a cara de Freud, a da personagem de "Divinas Palavras", a do aidético de "As Is". Eu ficava intrigado imaginando como isto poderia funcionar, ao ver o filme pronto vi que tudo se harmonizou. "O ator diz ter tentando fazer de cada depoimento de Antônio César - só apareço uma vez de forma real, contracenando com os outros" - uma situação definida na vida dele, "numa evolução até a sua morte. Isso mudava a maquiagem, a vitalidade, a forma de comportamento, o timbre da voz." Além de Rodrigo Santiago, o quarteto central de "Romance" é interpretado por Imara Reis, Isa Kopelmann e Hugo Della Santa, ator recentemente falecido. O diretor Bianchi já planeja um novo filme, "A causa secreta", "onde atualizo um conto de Machado de Assis para falar sobre pessoas muito boas. Essas que são contra a farra do boi, mas são proprietárias de matadouro". Entre os planos e sua realização, sobram empecilhos: "Depois dos prêmios por "Mato eles?" minha luta para fazer cinema, que era normal, ficou mais difícil. Porque aqui a legião de administradores do fracasso é enorme, quando alguma coisa dá certo vem porrada de todo lado. Quando um erra se torna cúmplice dessa gente e, então logo ganha verba para outro filme. É a indústria do erro. Parece que está todo mundo empenhado em administrar o problema do cinema brasileiro. O que menos interessa é a solução, pois aí vai ter muita gente sem emprego. Eu sou a favor da inteligência, da transgressão, do assumir riscos - mas a política de cinema que está sendo feita no Brasil parece optar pelo contrário disto." Para ser amado. Ou odiado Se a qualidade de um filme deve ser medida unicamente pela harmonia entre seus diversos componentes e segmentos, "Romance" tem muito poucas possibilidade de ser considerado um bom filme. Mas se essa medida de qualidade levar em conta também a vitalidade, a pulsação cinematográfica, a capacidade de ser original, criativo e contagiantemente corrosivo na sua proposta de denúncia, reflexão e crítica, então "Romance" é um filme notável. Corre pelos seus fotogramas a essência do melhor e mais inquieto cinema brasileiro, de Glauber Rocha ao Cinema de Invenção, cunhado na Boca do Lixo paulistana e imediações não necessariamente geográficas. Um painel entre cínico e angustiante do momento brasileiro; um quebra-cabeças armado por uma jornalista (Imara Reis) para resgatar a memória de um morto (Rodrigo Santiago), que serve como armadilha para muitos vivos se deixarem flagrar; um mergulho em corações e mentes atormentados, massacrados e sem saída (os amigos - amantes do morto, Isa Kopelmann - que se afoga na própria loucura, e Hugo Della Santa - que se confina à solidão policiada pelo vírus da Aids). No rastro dessa memória, "Romance" vai e volta de São Paulo a Curitiba, sem fazer segredo do que encontra pelo caminho: a ausência de solidariedade social que irmana desde motoristas de táxi e especuladores variados, chantagem, ameaças, oportunismo político, solidão, marginalidade, cooptação dos aparentemente melhor intencionados pelo poder. O filme algumas vezes se alonga desnecessariamente (como no documentário final, que em princípio é ótimo recurso) e outras vezes se ressente de exagerada densidade demográfica (a amiga da jornalista, por exemplo, feita por Cristina Mutarelli, é uma das personagens que não têm nenhuma utilidade), mas tem força suficiente para superar esses tropeços. A concisão e a contundência dos diálogos são raras em qualquer texto escrito em português, a montagem encontra algumas soluções da maior originalidade - como na seqüência do restaurante em que o próprio diretor se torna ator, a trilha sonora do grupo Chance valoriza a atmosfera de labirinto e de mistério, culminando com um pungente samba na seqüência final. A direção de atores é outro ponto alto deste filme incomum, onde protagonistas e coadjuvantes em geral parecem completamente ajustados às personagens. "Romance" é um tipo de cinema altamente pessoal, revelando a presença de um autor que se expressa, em termos estéticos e ideológicos, de maneira radical. É um filme para ser amado, é um filme para ser odiado. Ignorado, nunca. (E.P.)